Couto foi um dos meus
personagens de infância. Sua mãe era dona da pensão Comércio e ele de oficina de bicicletas, ambos os
estabelecimentos funcionando na praça dr. João Alves, onde minha família
residia. Eu tinha alguns amigos que moravam na pensão, os irmãos Jayme,
Leônidas e Jarbas Gusmão, colegas do grupo escolar Gonçalves Chaves, que aqui vieram
estudar. A praça era o nosso quartel-general. Ali, juntamente com meninos das
redondezas, brincávamos de tudo: futebol, soldado e ladrão, pegador, esconde-esconde,
cabra cega, finca, bolinha de gude, empinávamos araras, de rabo e surecas,
estas destinadas a capturar araras inimigas – passávamos goma com pó de vidro
na linha – e outros folguedos da idade. Pilotávamos também carrinhos de rolimã.
O piso era inadequado para a prática de patins e skate ainda não existia.
Quando aos nove anos ganhei minha primeira
bike, Monark sueca grená comprada na loja da gráfica Orion, Couto dava a
manutenção: colar pneus, lubrificar etc. Lavá-la, minha tarefa, o que eu fazia
com prazer. Assim, começamos a frequentar sua oficina, eu e outros meninos
também seus clientes. Lembro-me bem de Vaninho Antunes, Dema, Cezinha, Fu, Oswaldinho
e Ricardo Souto, meus vizinhos, Raimundo e Ricardo, filhos de Cely e Alberto
Paculdino Ferreira. Com a convivência, Couto passou a ser o nosso herói. Ele
possuía uma das duas ou três motocicletas então existentes na cidade, BSA preta
equipada e tratada como namorada, tamanho o cuidado que dispensava à mesma.
Couto era um mocetão de seus vinte e poucos anos, mulato bem apessoado, bigode,
e montado nessa moto fazia o diabo. Nas noites de fim de semana, envergava um
de seus ternos de linho branco que a mãe lavava, engomava e passava, sapato
bico fino de duas cores e se mandava para o baixo meretrício, logo ali abaixo,
região da Catedral, onde pontificava o casarão de Roxa, ou mais além,
território de Anália na praça de esportes. Na segunda-feira à tarde, todos reunidos na oficina,
ele nos contava suas peripécias com prostitutas, malandros e polícia. Mas não
se metia em brigas e jamais fora preso. Foi ali que aprendemos termos – gigolô,
gonorréia, cavalo de crista – e coisas de que jamais havíamos suspeitado... Meu
pai, médico, tratava as recorrentes blenorragias do nosso vizinho.
Couto passou a estudar em livros de umbanda,
decorar cantigas em nagô, aprendeu a tocar atabaque e, aos poucos, foi deixando
reparos de câmaras de ar e lubrificação de bicicletas a cargo de um meninote
aprendiz, Gerinha do Morro. Continuou com o serviço de pintura de bicicletas e
atendimento mecânico às outras duas ou três motos da cidade. Sua vida, afora a
raparigagem, era dedicada cada vez mais aos mistérios do além. Com a morte da
mãe e o arrendamento da pensão, viu-se livre para cumprir o seu destino: montou
um terreiro de candomblé no bairro Maracanã e para lá se mudou. Salvo engano, a
oficina de bicicletas passou a Gerinha, que algum tempo depois montaria oficina
de conserto de geladeiras, no que se deu muito bem.
Perdi o contato com Couto. Fui estudar fora
e, quando em férias, ia às vezes à oficina papear com o amigo Gera. Este
tornara-se exímio capoeirista, chefiava turma temida nos Morrinhos e, de certa
forma, foi uma espécie de meu segurança, pois, quando me encontrava em gritos e
bailes de carnaval, ele sempre passava por mim e perguntava: “Algum problema
aí?” As brigas entre turmas eram uma constante na época. Ficaram célebres os
embates entre as de Gerinha do Morro e Gerinha Português.
Passados alguns anos, encontrei-me com Couto
num dos bares da antiga rodoviária, aonde fôramos comprar cigarros, eu, Geraldo
Madureira – Grego – Reinaldinho Oliveira e Hélio Guedes, Patão. Perguntei-lhe
sobre o terreiro e ele disse que ia de vento em popa. “Assim de meninas e eu
cantando: Já chegou, já chegou, o caboclo mamador; tá na hora, tá na hora,
tirem os peitos pra fora...” Em seguida convidou-nos a ir ao terreiro. Mas, à
uma da manhã...? Fomos, não sem antes comprar uma galinha assada e farofa, garrafa
de pinga e alguns charutos.
O bairro Maracanã era um deserto. Uma
casinha ali, outra acolá... Nenhuma rua calçada, neca de iluminação pública,
nenhuma benfeitoria. Enfim, chegamos. Casa simples, cerca-viva baixa isolando-a
da rua, jardinzinho perfumado – damas da noite –, sala, dois quartos, cozinha. Banheiros,
masculino e feminino, ficavam fora, no terreiro, círculo cimentado e coberto
com palha, mureta em volta servindo de assento. Acenderam-se lampiões a
querosene. Tomamos lugar nos dois pequenos sofás existentes na saleta e calados
ficamos. Couto voltou da cozinha trazendo copos, serviu-nos da pinga, tomou uma
e encheu outro copo até as bordas, que depositou aos pés da imagem de Exu
disposta a um canto. Acendeu velas em torno desse copo. Disse que comeríamos a
galinha assada depois da cerimônia, pediu licença e entrou num dos quartos.
Voltaria transfigurado. Calça e túnica em
cetim escarlate, capa ou manto da mesma tonalidade, na cabeça um capacete com
chifres. E na mão um trinta e oito, cano longo. Ficamos boaquiabertos.
Revólver? Ele não parou para explicar. Chegou até a porta que dava para o
terreiro e disparou para o alto, um, dois, seis tiros. Esvaziou o tambor. Só aí
disse: “É pra mudar o disco!” Sentou-se num banquinho e pediu que acendêssemos
os charutos em homenagem ao santo. Conversamos, não me lembro sobre o quê, não
nos foi servida mais pinga e ele nos conduziu ao terreiro. Reinaldinho, o
último da fila, abaixou-se ao passar por Exu e tomou um gole da pinga deste.
No terreiro, Couto pediu que nos sentássemos
em semicírculo – havia uns seis banquinhos ali –, afastou-se alguns passos,
olhou-nos um a um nos olhos e ajoelhou-se. Tirou a capa e estendeu-a no chão.
Em seguida, colocou cerca de seis a oito garrafas deitadas sobre a capa e, com outra
garrafa mais resistente, partiu as demais em cacos. Observávamos. Tirou o capacete, ficou de quatro, ajeitou a
fronte sobre os cacaréus e, inacreditável, começou a triturá-los... Quando
acabou, uns cinco minutos depois, pediu que verificássemos sua cabeça. Nenhum
filete de sangue!
De volta à sala, Reinaldinho deu o alarme:
“Couto, o copo do santo baixou!” Ele somente sorriu e disse: “Pai tomou um
gole.” Veio a galinha com farofa, tomamos o resto da pinga, baforamos mais um charuto
e nos despedimos . No caminho de volta o assunto não poderia ser outro: “Será
que vimos o que vimos?” Grego sentenciou: “A pinga, pouca, não deu para nos
embriagar; o charuto não era de maconha, portanto, esse Couto tem mesmo parte com
o demo ou é ilusionista ou mágico!