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9.7.08

O CASAMENTO DE HÉLIO

Publicado em O Norte, em 20.07.2008
Muito se escreveu e muita tinta ainda vai rolar para se falar sobre essa personalidade ímpar que acaba de nos deixar: Hélio de Castro Guedes. Deve-se a seu pé, planovalgo flexível (pé chato), o apelido, Patão.
Agudo observador, desenhista de mão cheia, pintor de telas que retratam a paisagem rural norte-mineira (notadamente seus vários céus e "quebradas") e o casario colonial de nossas cidades (dentre elas aquela que mais amou, sua terra natal, Montes Claros), Pato foi também figurinista (para quem não sabia), decorador de vitrines e de não poucos carnavais de rua e clubes e festas de agosto - catopês -, animador cultural, instrumentista (gaitas de todos os tipos, teclados, guitarra e violão), luthier, afinador de piano (possuía o raríssimo dom do "ouvido absoluto"), arranjador e compositor de alguns jingles e canções, cantor (sublimes back-vocals), folclorista (co-fundador do grupo Banzé) e, por influência dos Beatles e Rolling Stones, integrante (guitarra e vocais) da primeira banda (na época chamava-se "conjunto") de rock de Montes Claros, Os Brucutus.
Paralelamente a essas atividades, criou e pintou placas, faixas, cartazes promocionais e camisetas, concebeu out-doors, banners, rótulos para vários produtos, bottons e o que mais se fizesse necessário ao seu desempenho como publicitário. Autodidata, tornou-se desenhista e animador gráfico de grande sensibilidade após varar noites diante do computador. Dominou a máquina.

Esse foi o Patão técnico, profissional. Escritos outros certamente ampliarão o tema e abordarão as demais facetas e os inúmeros matizes dessa curiosa figura humana. Hoje, aqui neste espaço, daremos apenas uma amostra do lúdico, irreverente e pueril que a compuseram, ao tornar público os percalços do seu matrimônio.

Numa madrugada de um dia qualquer nos idos de 1993 estávamos, Pato e eu, aboletados em uma daquelas mesas do querido e saudoso bar e restaurante Papai, ali no final da padre Augusto com Afonso Pena. (en passant: algum tempo depois, a segunda demolição desse templo da boemia - que já ocupara o ponto defronte quando da primeira - decretaria o fim da vida noturna na área central de Montes Claros. Um crime! O abrigo da fina flor de nossa intelectualidade deu lugar a uma garagem de automóveis, em nome do progresso... A tristeza foi tanta que, um a um, seus frequentadores/fundadores vêm tombando... Indigne-se, prezado leitor!).
Calados por algum tempo tempo, pois entre velhos amigos muitas vezes bastam um gesto ou um olhar para o que pensamos seja expresso, eis que ele, de chofre, revelou-me:
- Cabaret, sabe aquele meu casamento com a Rosana?... Tudo não passou de um embuste, uma farsa!
Fiquei apoplético. Fora padrinho do casal, imaginava que se desse bem...
-Vamos tomar mais uma que lhe conto tudo - acrescentou ele.
E comandou ao garçom:
- Bill, uma cerva e duas Viriatinhas!
- Não vou de pinga, não, Pato - disse eu.
- Vai, sim, ou não lhe conto nada!
- Então anda, desembucha! - cobrei.
- Deixemos a bebida chegar - disse ele rindo à socapa, se sacudindo.
Bill veio, depositou a garrafa e os copos sobre a a mesa e ficou por ali,dado que era a ouvir conversas alheias. Pato não titubeou:
- Desembaça, garoto, que o papo aqui é de família.
Acompanhando Bill se afastar por cima das lentes, tirou os óculos, voltou-se para mim, olhou-me nos olhos e, com o cenho ainda franzido, iniciou o relato a seguir.
- Sabe aquele padre que fez o casamento?
Lembrei-me. Tipo bonitão, aparentando uns 35 anos, alto, forte,cabelos pretos, barba feita, perfumado... Paramentado em seda, tudo finamente bordado... Eu nunca vira um padre igual.
- O primo de Rosana?
- Que primo que nada! Aquele padre é um embusteiro, um charlatão, casamenteiro profissional.
- E o sacristão?
- Outro safado!
Relembrei os dois e cenário do casório, impecável: toalha e paninhos de linho sobre um aparador improvisado em altar, velas e castiçais, a Bíblia numa estante ao lado, cálice dourado e hóstias (o padreco dera comunhão aos nubentes e a quem até o altar se adiantou)... E como falava bem, um verdadeiro ator! E a papelada que nós, padrinhos, assinamos? Tudo em perfeita ordem... Pato era um gênio, forçoso reconhecer.
Virei a pinga de um só trago.
- Agora, seu sem-vergonha, vai me contar tudo, tintim por tintim!
Acontecera o seguinte:
Ele havia construído um charmoso sobradinho nos fundos da casa da mãe e para lá se mudou. Queria maior privacidade e fazer das suas longe do olhar inquisitorial de dona Júlia, minha querida e amada segunda mãe, porém, catolicíssima e intransigente ao extremo quando o assunto era sexo fora do casamento (ah, suas ex-empregadas domésticas que o digam...).Bem, essa mudança do Pato dera-se muito tempo antes de ele resolver a se casar. Aliás, nem mesmo conhecia a futura mulher. Mas, quando se decidiu pelo passo fatal, sobreveio o impasse: dona Júlia jamais iria admitir que o casal ali se acasalasse e fornicasse, intramuros, em domínios seus, sem que a união de corpos fosse abençoada e sacramentada pela Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana. Jamais! Rosana, a noiva, era divorciada, impedida de recasar na Igreja. Imagino que, se porventura Julinha viesse a sonhar ou a saber desse fato, impediria até mesmo o namoro: "Andando com mulher descasada, Hélio?!"
- Como descobriu o padre? - perguntei.
- Foi Reginauro Silva quem arranjou tudo.
- Danado, esse Regi, mas, como foi mesmo?
- O padre era um ator de comerciais de uma a agência prestadora de serviços à Globo. Reginauro o conheceu no Rio. O velhaco celebrava casamentos em todo o Brasil.
- Estou me recordando agora do almoço do domingo, dia seguinte ao casamento. Ao retornar da missa das oito na Catedral, Julinha ligou para o hotel do padre. Queria saber dele o prato predileto, pois resolvera homenageá-lo com um almoço em família antes que tomasse o avião de volta ao Rio. Atendeu-a o sacristão, visto que o galã ainda dormia - o que ela estranhou, porque imaginava que padre acordasse às cinco da matina, tomasse banho frio e passasse a ler o breviário, ainda em jejum -, e foi curto e seco: "Acho que é bacalhau, dona Júlia." Foi um corre-corre na casa. Onde encontrar bacalhau àquela hora de um domingo? Acordaram Beto, que, ressaquiado, resmungando, saiu de carro a atender às ordens da mãe: "Traga-me esse bacalhau, mesmo que vá buscá-lo em Portugal! E não me volte sem um bom azeite e vinhos!" Nervoso - o nervo passageiro dos Guedes -, Beto ainda tentou ponderar: "E o sal, e o sal, como a senhora vai dessalgar o bacalhau?" "Isso é comigo" - disse ela. "Muitas águas, batatas, leite, panela de pressão e uma oração e a Providência divina tudo resolverá." Mas quem resolveu mesmo foi Beto e quem providenciou fui eu. Ele me acordou tão logo saiu de casa. Estava sem saber o que fazer. Bacalhau, àquela hora, onde? Estava tudo fechado. Fui prático: "Elementar, meu caro Watson, vamos ao Armando's!" Liguei para Julinha e disse-lhe que teria o bacalhau, pronto, ao meio-dia. Encaminhamo-nos, Beto e eu, ao restaurante, onde encomendamos o prato, o azeite e os vinhos e ainda rebatemos a noitada da festa.
- Esses Guedes... - comentou Patão.
- Mas deu tudo certo, velho. O almoço foi um sucesso. Você precisava ter visto Beto, adorou o padre. Disse-me: "Isso é que é padre, jovem, aberto, sem grilos..." Até mesmo seu irmão, Zeca, que tem birra do clero, simpatizou com o moço.
- É, esse meu casamento foi mesmo uma novela. Para mamãe aceitar o fato de que a cerimônia seria realizada na casa dos pais de Rosana, você é incapaz de imaginar a mão-de-obra que foi. Queria porque queria a Catedral.
- O que fez para convencê-la?
- Disse-lhe que havíamos procurado e não encontrado horário em todas as paróquias da cidade, que em maio era assim mesmo etc e tal. Mas, quando achei que havia cedido, ela ameaçou recorrer ao bispo, seu grande amigo dom José! Aí seria o fim do sonho, desvelariam a trama. Já pensou se o bispo resolve celebrar, ele próprio, o casamento em palácio? Para a velha seria a glória, a manifestação divina de sua fé. Eu, meu caro, suava frio, mas com o argumento de que a casa de Rosana vinha sendo pintada para o evento e alguns detalhes mais, ela deu-se por vencida, mas, que luta!
- Quem bancou a produção da novela?
- Os pais da noiva, ora bolas!
- Ah, quando Julinha souber disso...
- Se contar a ela eu lhe mato! Cabaret, Cabaret, olha lá, hein? Vai perder um amigo...
- O tempo tudo cura, Hélio, o episódio já vai para três anos...
- Para mamãe o tempo não passa!
Esperei um ano. Uma bela tarde, sentados Julinha e eu no alpendre de sua casa, a esticar prosa como amiúde fazíamos (ela sempre exortando-me a frequentar a Igreja), não resisti ao segredo. Contei-lhe tudo. Sua reação? Riu à bandeiras despregadas, porém raciocinava nas gargalhadas, pois logo retomou o ar sóbrio e me indagou:
- Quer dizer que o casamento não valeu?
- Não, Julinha, pelo Direito Canônico o casamento é nulo! - sentenciei.
- Deus é grande e é pai! Escreve certo por linhas tortas. Hélio ainda haverá de se casar na Catedral! - rejubilou-se minha amiga.

NOTAS:
1. Escrevi estas mal traçadas linhas logo após as exéquias de meu amigo Patão, em 03.07.2008 (ele nasceu em 26.01.1948). Deixei para publicá-las agora receoso de que a Igreja pudesse lhe negar a missa de sétimo dia. Explico-me: em tempos de Bento XVI, a revelação de uma heresia de tamanha magnitude poderia não passar despercebida...

2. Foi muito bonito o enterro do Pato. Bonito? Sim, e por que não? A tarde desmaiava, reproduzindo os seus quadros, e a flauta de Rafa e o violino de Gabriel emocionaram a todos. Só não gostei do colete com o qual partiu - cinza -, quando poderia ter ido com o psicodélico ou o dourado que lhe presenteei o ano passado por ocasião de seu aniversário, advertindo-o: "Pato, este é um colete para palco, não para Café Galo ao meio-dia!" E ele: "Cê acha que eu sou doido, Cabaret?" E eu: "Você?..."
Patão adorava paletós e coletes e desses últimos contabilizava 27 unidades.
OS BRUCUTUS, alguns anos depois... Eu, Beto, Tiupas e Pato

COMENTÁRIOS DE AMIGOS DO PATO:

Virgínia de Paula:
"Haroldo.
Ando numa fase de hiper sensibilidade. E ainda Patão vai embora! Ele era daquelas raras pessoas, que, estando eu num lugar chato, tudo ficava bom, assim que ele chegava. Em outras palavras, ele salvava uma festa chata. Sua presença, iluminava. Há outras pessoas assim, felizmente, mas...muitos estão nos deixando. Dá uma dorzinha enjoada dentro da alma. Haroldo, amei tudo o que você escreveu. Acho que ninguém melhor do que você, que o conheceu tão bem, para falar sobre ele. Mesmo porque você é outro com este poder de salvar uma noite. Sempre foram assim, desde os sessenta. Lembro bem de uma vez no Max Mim...estava tudo aborrecido. E vocês chegaram. De repente, tudo ficou bonito. Vou incluir nosso amigo Tiupas nesse rol. Ontem, sentei-me ao lado dele e Rita, na missa de sétimo dia. Bem que podia ser tudo de mentirinha, como foi o casamento, e amanhã, a gente se encontrar com ele completamente saudável, contando que nos pregou uma peça. :)
Haroldo, segue anexo a foto prometida. Geraldo Machado, Paulinho e você. No bolso de Paulinho, vemos a embalagem de fósforos, que trouxe de Londres e dei para cada um da turma. Simples fósforos, mas eram ingleses, uai. Traduzia todo o meu afeto por vocês. Veja o detalhe do cinzeiro, ainda dos anos 50!
Virgínia"
Ainda Virgínia:
"Só mais uma coisa: concordo totalmente com seu protesto sobre a falta de bares no centro da cidade. Parece que só mesmo lá na parte mais velha, ainda vemos alguma coisa. E já tivemos tantos. O Viche, o Quintal, mesmo o Intermezzo, que era restaurante, mas tinha aquele alpendre de frente para a rua, que fazia toda a diferença. O bar do Papai, foi de Virgílio por algum tempo. Ele teve sociedade ali. E agora...um estacionamento. Eu não vou mais a bares, mas mesmo se eu quisesse, onde ir? Os da avenida...são para outra geração. Gente mais velha do que nós. :)
Eu não sabia do falso casamento. Isso vai dar o que falar por aí. Mas...é a cara dele. Adorei a história.
Virgínia"
OBS: Passo pelas gerações... Veja Zé Guedes, nos bares da avenida!!! rsrsrsrsrs
Reinaldo Oliveira:
Prezado Cabaret,
Gostei da crônica e como voce, tinha conhecimento da armação do casamento do "Pato" e do falso padre da "Igreja Brasileira" arranjado para enganar Dona Julia.Mas com uma coisa você deve concordar....." Foi um senhor casamento" lembra?Reinaldo Nunes----- Original Message ----- From: "hatour" To: "reinaldo.oliveira" Sent: Thursday, July 10, 2008 3:52 PMSubject: O casamento de Patão
OBS: O Pato me disse que o padre era de uma agência de publicidade... Bem, talvez quisesse colorir ainda mais o fato...
Deraldo Tourinho (Salvador):
Cabaré,
O Patão morreu de que? Uma pena! Sempre que lembro dele lembro do velho Mangangão e seu cinzeiro que o Hélio levou como suvenir.
Abraços, Deraldo.
LEO PUPUTTI:
Cabaret, só vc com sua inteligência peculiar para narrar o casamento de seu amigo Patão com riquezas de detalhes. Quase uma novela. Acho que nem Kafka narraria com tanta maestria. Parabéns. Chique no último. Vê se aparece. Um grande abraço, Léo Ogando.
IRENE TOURINHO:
Haroldo:
Acabei me envolvendo com outras coisas e não lhe disse que li seu texto sobre o casamento de Patão e gostei muito. Aliás, sempre achei que vc devia escrever mais. É um prazer ler seu texto. Sua forma de escrever, a maneira como encadeia os assuntos, os comentários que acrescenta... tudo isso é muito atraente e, além do mais, elegante.
Fiquei super triste com a notícia da morte de Patão, emocionada mesmo. Recordei muitas histórias dele e com ele, e enviei bons flúidos - sei lá pra onde - em homenagem a ele.
A Marina teve uns dias comigo e foi bem legal. Percebo que quando ela está engajada em alguma peça as coisas melhoram muito. Vamos torcer para que esta vida de artista engate logo.
Um bju,
Irene

Marina Tourinho

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