Publicada em 06.12.11 > www.montesclaros.com
Voltara da praia bronzeado, renovado, e mais disposto do que nunca a mais um ano de luta. E aquele não seria mole, ano de vestibular. Já me matriculara no 3º científico, noturno, do Champagnat. Faltava-me o cursinho, complemento indispensável aos que almejam o anel no dedo. Sem esse preparatório, o cursinho, com professores tarimbados em passar macetes e pegadinhas dos testes aos vestibulandos, fica mesmo difícil para alguém vir a empunhar o canudo. Egressos de escolas públicas e particulares de segunda linha, onde não raro pessoas incapazes de aprender se metem a ensinar, que o digam.O último ano do secundário foi sempre um período de extremo sacrifício para os que desejam ir além. Nada de barezinhos, horas-dançantes ou inferninhos (devido às luzes vermelhas), como eram chamadas as miniboates do segundo piso do edifício Maleta, o "antro da perdição" da Belo Horizonte dos anos 60. Afora nas mãos de James Dean em Juventude Transviada, foi nos corredores do Maleta que vi, ao vivo, aqueles temíveis canivetes automáticos e seus portadores, adolescentes paramentadas de couro, blusões negros, comme il faut. Assim, aos domingos, para relaxar, no máximo um cinema. Ou esticadas ao Mineirão em dias de clássico. Esporte mesmo se praticava nos bate-bocas dos recreios escolares. Namorar, nem pensar.
Optei por um cursinho vespertino, de uma às cinco. Diziam ser o mais moderno da cidade, não me vem agora o nome... Próximo à igreja da Boa Viagem, funcionava em ampla casa com quintal, tranformado em um pequeno anfiteatro e cantina. Sob uma mangueira centenária, algumas mesas e cadeiras e ao fundo os sanitários. Vinte alunos em cada sala, poucas, dotadas de aparelho de TV em que se podia assistir aos repetecos das aulas em videotape.Fumava-se em sala de aula. Quando o meu Zippo negou fogo, eis que me cutucam as costas, ela, oferecendo-me um delicado isqueirinho dourado, Cartier? Eu ainda não a vira, aquele era o nosso primeiro dia de aula. E agora não via mais nada, somente dois olhos azuis dentro dos meus, espetando os meus. Com que pretexto me voltar, para ser novamente fuzilado por aquele olhar? Logo, logo acudiu-me a ideia de fumar. Ela acendeu-me novamente o cigarro e deixei a sala de aula. Não para ir à cantina ou ao banheiro, mas para poder observá-la por inteiro ao retornar. E o que vi, meninos... Estava ali a perfeição, a beleza da arte grega em carne e osso. Blusa branca, saia azul-claro, meias brancas três quartos, sapatos pretos... Aluna do Sacre Coeur. Desculpe, nem mesmo me apresentei; meu nome é Bernardo, e o seu? Marina, respondeu ela. Formalmente apresentados, dali, o que viria, fiquei a imaginar. Ela cursava o científico ou clássico pela manhã e não dera ou não dava tempo de almoçar em casa...
Absorto em tais pensamentos, à pergunta do professor não respondi, era comigo?Desculpe-me, professor, eu havia me ausentado da sala... Mas a questão se refere à nossa última aula, disse ele. Ah, sim, respondi me recompondo: as células da traqueia são caliciformes... E o tecido? perguntou ele a um outro aluno.Amiudaram-se as nossas falas. A tendência natural dos jovens a formar grupinhos moldou mais ou menos o nosso: Marina, eu, Ana, Maria, Otávio e Alberico, este último neto de um ex-governador do Ceará. Éramos, ele e eu, os únicos não belorizontinos da turma. Quando possível, saíamos para um chopinho e tagarelar. Mentiroso como só ele. Eu deixava passar, me divertia a valer com suas lorotas. De baixa estatura, franzino, Alberico era do tipo vermelhão, cabelos cor de fogo, enormes olhos azuis, dois lagos a transbordar bondade.Aparentemente ingênuo, de bobo nada tinha, pelo contrário.
Devido ao confinamento voluntário, começamos a adquirir aquela cor indefinida, o amarelo-vestibular. Cursinho à tarde, científico à noite, quando eu chegava ao velho hotel São Luiz tomava um banho, lanchava e agarrava-me aos livros. Não raro surpreendia-me o amanhecer. Para afastar o sono consumia-se muito Pervitin, do qual fiz uso algumas vezes, mas, como o coração disparava, parei.Alberico ligou-me num sábado, convocando-me a sair. Não aguento mais, hoje vou botar pra quebrar, topa? Como eu só precisasse de um convite, respondi de pronto: topo! Promete não falar em vestibular? Prometo! E lá fomos nós. Começamos por uma cantina árabe, quibes e chopes. Quando passamos à Vodka, após a segunda dose Alberico observou: Você anda espichando os olhos para a Marina, tá meio caído por ela, não? Eu? Impressão sua, meu caro... Alguém mais teria percebido? Fizera tudo para disfarçar... É, pode ser mesmo impressão minha, mas quando o professor disse na aula de inglês, She's the most beautiful girl in town, você olhou para ela de imediato. Coincidência, Alberico, coincidência... Ela deve ser mesmo a garota mais bonita da cidade, disse ele, nem no Ceará vi coisa igual! No Ceará? Alberico, as garotas mais bonitas do Brasil estão aqui mesmo, em BH. Mais uma Vodka e ele abriu o jogo: Sabe, Bernardo, quase me apaixono pela Marina, mas me curei a tempo. Essa declaração foi um choque, senti o sangue ferver. Com o auxílio de um gole e de um cigarro, pude enfim contornar a náusea que me invadia. Por que não foi em frente? perguntei. Era causa perdida. Como assim? insisti. Bernardo, vivemos aqui de mesada e a menina é rica. E daí? E daí, disse ele, daí que eu a vi abrindo a carteira na cantina. Assim de dólares, xará... Quer mais? O cara que às vezes vai buscá-la na aula, aquele do MG branco, que na minha ilusão eu pensei tratar-se de um irmão, sabe quem é? O namorado, xará, vi a foto dos dois em uma coluna social, baile no Iate. Vamos mudar de bar e de assunto, disse eu.No caminho para o restaurante Rosário, na avenida Paraná, fui remoendo a derrota. A fina flor da boemia local encerrava as noitadas no Rosário. Ali, entre músicos, intelectuais, putas, policiais, gigolôs, estudantes e jogadores profissionais, expurguei a minha dor. Disse Alberico, meu irmão, você me salvou de uma gelada: eu pretendia dar um xeque-mate na Marina depois de amanhã.