Cannes revê seu festival de 68, que não terminou
Clima do Maio de 68 levou Godard e Truffaut a impedir longa do espanhol Carlos Saura de ser exibido. Sessão acontecerá 40 anos depois.
Edição que começa na quarta lembrará mostra interrompida por protestos SILVANA ARANTESDA
Clima do Maio de 68 levou Godard e Truffaut a impedir longa do espanhol Carlos Saura de ser exibido. Sessão acontecerá 40 anos depois.
Edição que começa na quarta lembrará mostra interrompida por protestos SILVANA ARANTESDA
1968 foi o ano em que o Festival de Cannes não terminou. Para o cineasta espanhol Carlos Saura, ele nem sequer teve início.Em 18 de maio, quando o longa de Saura "Peppermint Frappé" seria exibido na disputa pela Palma de Ouro, um protesto de cineastas cancelou a sessão e deu cabo do festival, cancelado oficialmente no dia 19, sem que houvesse premiação. Eram os gritos de protesto que tomavam as ruas de Paris no Maio de 68 ecoando em Cannes.Foi a única vez em que uma edição do festival foi interrompida antes do fim. O festival deixara de ser realizado nos anos pós-guerra de 1948 e 1950, por falta de verbas. A guerra também adiou o início do festival, de 1939 para 1945.A edição de 68 começou em 10 de maio, com uma sessão de "E o Vento Levou..." (1939) em homenagem à atriz Vivien Leigh, intérprete de Scarlett O'Hara, que morrera em 67, e sofreu atrasos na agenda dos dias seguintes, por causa da greve de serviços na França.Passados 40 anos, o 61º Festival de Cannes, que começa na próxima quarta, irá rever com uma homenagem aquela edição, em que o festival foi tragado pelos fatos históricos.Saura voltará a Cannes para exibir "Peppermint Frappé", no qual os dilemas de um triângulo amoroso metaforizam a opressão do regime franquista.Desta vez, o filme faz parte da mostra Cannes Clássicos, com outros quatro títulos abortados em 68 -"13 Jours en France" (13 dias na França), de Claude Lelouch; "24 Heures de la Vie d'une Femme" (24 horas da vida de uma mulher), de Dominique Delouche; "Anna Karenina", de Aleksandr Zarkhi (1908-1997); e "The Long Day's Dying" (o longo dia da morte), de Peter Collinson (1936-80).Godard e TruffautÀ frente dos que impediram a sessão de "Peppermint Frappé" em 68, estavam Jean-Luc Godard ("Acossado") e François Truffaut ("Os Incompreendidos"), nomes centrais da nouvelle vague francesa.Godard, agarrado às cortinas da sala, impedia a visão da tela e, portanto, a projeção.Ele e Truffaut, aos gritos, protestavam contra a atmosfera festiva instalada em Cannes, enquanto estudantes e trabalhadores eram reprimidos pela polícia em suas manifestações nas ruas de Paris e Nanterre.Os protestos de maio de 68, que começaram no meio estudantil, em reação a um projeto de reforma universitária, e tiveram adesão dos sindicatos dos trabalhadores, não poderiam ter a indiferença dos artistas, na opinião de Truffaut e Godard, à qual aderiram alguns membros do júri de Cannes.O "levante" foi assim noticiado pela Folha na época: "Eram quase 18 horas [do dia 18] quando surgiu [a atriz italiana] Monica Vitti, membro do júri. E então deu-se a surpresa maior: ela, em lugar de ir ao encontro dos demais membros do júri, que tentavam impor a ordem, alinhou-se nas fileiras dos rebeldes, logo depois de ter apresentado sua demissão do júri. Declarou que não podia ficar alheia ao grande movimento que sacudia a França".Vitti não foi a primeira a desertar do júri, presidido pelo escritor André Chamson. O cineasta Louis Malle abriu a fila. E foi seguido por Roman Polanski e Terence Young."As reações dos jornalistas foram contrastantes -clarividentes ou cegas; sombrias ou engraçadas; engajadas ou perplexas; raivosas ou fatalistas", afirma o crítico francês Jean-Christophe Ferrari, em estudo sobre a cobertura do Festival de Cannes de 68 pela imprensa francesa (leia trechos à dir.).O Brasil não teve concorrentes à Palma de Ouro naquele ano. Nas 20 edições anteriores do festival, o país havia emplacado 16 longas em competição.Neste 2008, estão na disputa Fernando Meirelles (com "Ensaio sobre a Cegueira") e Walter Salles e Daniela Thomas (com "Linha de Passe"). O longa de Meirelles abre o festival.Além de apoiar a causa de estudantes e trabalhadores, os cineastas que interromperam o festival defendiam o cinema de autor, em oposição às produções com metas mercadológicas, um tema ainda vivo.
Assista aos curta-metragens do festival e vote AQUI > www.youtube.com/nfb

FOLHA DE SÃO PAULO
15/05/2008 - 09h09
Cannes aplaude filme de Fernando Meirelles por cinco minutos
SILVANA ARANTESda Folha de S.Paulo, em Cannes
Poucas horas antes da sessão de gala de seu "Ensaio sobre a Cegueira", que inaugurou ontem o 61º Festival de Cannes, em competição pela Palma de Ouro, o cineasta brasileiro Fernando Meirelles dizia: "Ainda acho que esse não é um bom filme para abrir o festival", dada sua história pesadamente dramática.
O tempo provou que Meirelles não tinha razão. Quando terminou a projeção de "Ensaio..." no Palácio dos Festivais, às 22h11 (17h11, no horário de Brasília), a platéia toda se pôs de pé e, nos cinco minutos seguintes, aplaudiu, voltada para Meirelles e sua equipe.
Foi a segunda vez na noite que o diretor recebeu aplausos de pé dos convidados internacionais do festival, como as atrizes Cate Blanchett, Faye Dunaway e Eva Longoria, que dividiam a platéia com boa parte do quem é quem do cinema francês.
A primeira ovação ocorreu quando o diretor chegou para a cerimônia de abertura, e sua presença foi anunciada pelo cerimonial, com a frase: "Senhoras e senhores, Fernando Meirelles". Entre uma e outra salva de palmas ao brasileiro, viu-se uma celebração ao cinema, em tom favorável aos autores que mantêm suas carreiras distantes do epicentro mercadológico da indústria (Hollywood), e seus filmes livres de ditames estéticos.
"Cartas de amor"
"O Festival de Cannes sempre seleciona grandes filmes. Vamos mandar cartas de amor a alguns deles, com o aviso aos distribuidores de que não são confidenciais", disse o ator e diretor norte-americano Sean Penn, que preside o júri desta edição. Em entrevista pela manhã, Penn ressaltara a pretensão de fazer com que os prêmios a serem concedidos por seu júri, no próximo dia 25, ajudem os filmes a "encontrar o seu público".
O ator francês Édouard Baer, mestre de cerimônias, citou a aparência de superficialidade que certos comportamentos em Cannes evocam -"os arrogantes, os que têm dentes sem sorrisos e sorrisos sem dentes"-, antes de enumerar filmes -como o vencedor de 2007, "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias", do romeno Cristian Mungiu- e encerrar com um "obrigado ao Festival de Cannes por haver seqüestrado as maiores brutalidades do mundo, em benefício da mais singular beleza".
Quem declarou oficialmente aberto o festival foi o cineasta francês Claude Lanzmann, 82, que disse ter descoberto recentemente pontos de contato entre suas idéias de cinema e as do diretor americano Quentin Tarantino, cuja obra é antípoda da sua. "Assim como a humanidade é uma só, o cinema é um só."
Pela manhã, após a primeira projeção para a imprensa de "Ensaio sobre a Cegueira", que terminou sem reações de aplauso ou vaias, Meirelles e elenco falaram aos jornalistas.
Imaginação
O diretor citou o escritor português José Saramago, autor do livro no qual o filme se baseia. "Saramago disse que o cinema destrói a imaginação e [por isso] não queria vender os direitos do livro [para a adaptação]."
Na versão de Meirelles para a trama sobre epidemia de cegueira que atinge toda uma população, exceto uma mulher (vivida pela norte-americana Julianne Moore), há momentos de breu e outros de branco total na tela, deixando a imaginação do espectador livre para preencher as cenas.
O público conta, porém, durante todo o filme com o auxílio de um som límpido e audível até os detalhes, um recurso do diretor para mostrar como se aguçam os demais sentidos dos personagens recém-cegos.
O roteirista e ator (no papel do ladrão) canadense Don McKellar disse que era também preocupação de Saramago que o filme mantivesse "o caráter alegórico" do livro, "um verdadeiro sumário do milênio", na opinião de McKellar.
A Meirelles interessava abordar "a fragilidade da nossa civilização". Para o diretor, o livro de Saramago mostra que "nós nos consideramos tão sólidos, mas, quando uma coisa desaparece [a visão], tudo colapsa".
O ator norte-americano Danny Glover, intérprete do velho com a venda, foi o mais enfático ao associar a ficção à realidade, tomando como exemplo o furacão Katrina, ocorrido em 2005 nos Estados Unidos.
"O negócio com o Katrina não é o que o governo fez ou deixou de fazer. É que aquelas pessoas [atingidas pela devastação] eram invisíveis para nós, assim como são no Iraque ou em Darfur. Nós vivemos num mundo em que não vemos pessoas", afirmou Glover.
Lionel Cironneau/AP
Fernando Meirelles (centro), com os atores Don McKellar, Alice Braga, Julianne Moore, e Gael García Bernal. Eles posam na estréia do filme "Ensaio sobre a Cegueira", que abriu o 61º Festival de Cannes, nesta quarta-feira (14)
Cannes aplaude filme de Fernando Meirelles por cinco minutos
SILVANA ARANTESda Folha de S.Paulo, em Cannes
Poucas horas antes da sessão de gala de seu "Ensaio sobre a Cegueira", que inaugurou ontem o 61º Festival de Cannes, em competição pela Palma de Ouro, o cineasta brasileiro Fernando Meirelles dizia: "Ainda acho que esse não é um bom filme para abrir o festival", dada sua história pesadamente dramática.
O tempo provou que Meirelles não tinha razão. Quando terminou a projeção de "Ensaio..." no Palácio dos Festivais, às 22h11 (17h11, no horário de Brasília), a platéia toda se pôs de pé e, nos cinco minutos seguintes, aplaudiu, voltada para Meirelles e sua equipe.
Foi a segunda vez na noite que o diretor recebeu aplausos de pé dos convidados internacionais do festival, como as atrizes Cate Blanchett, Faye Dunaway e Eva Longoria, que dividiam a platéia com boa parte do quem é quem do cinema francês.
A primeira ovação ocorreu quando o diretor chegou para a cerimônia de abertura, e sua presença foi anunciada pelo cerimonial, com a frase: "Senhoras e senhores, Fernando Meirelles". Entre uma e outra salva de palmas ao brasileiro, viu-se uma celebração ao cinema, em tom favorável aos autores que mantêm suas carreiras distantes do epicentro mercadológico da indústria (Hollywood), e seus filmes livres de ditames estéticos.
"Cartas de amor"
"O Festival de Cannes sempre seleciona grandes filmes. Vamos mandar cartas de amor a alguns deles, com o aviso aos distribuidores de que não são confidenciais", disse o ator e diretor norte-americano Sean Penn, que preside o júri desta edição. Em entrevista pela manhã, Penn ressaltara a pretensão de fazer com que os prêmios a serem concedidos por seu júri, no próximo dia 25, ajudem os filmes a "encontrar o seu público".
O ator francês Édouard Baer, mestre de cerimônias, citou a aparência de superficialidade que certos comportamentos em Cannes evocam -"os arrogantes, os que têm dentes sem sorrisos e sorrisos sem dentes"-, antes de enumerar filmes -como o vencedor de 2007, "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias", do romeno Cristian Mungiu- e encerrar com um "obrigado ao Festival de Cannes por haver seqüestrado as maiores brutalidades do mundo, em benefício da mais singular beleza".
Quem declarou oficialmente aberto o festival foi o cineasta francês Claude Lanzmann, 82, que disse ter descoberto recentemente pontos de contato entre suas idéias de cinema e as do diretor americano Quentin Tarantino, cuja obra é antípoda da sua. "Assim como a humanidade é uma só, o cinema é um só."
Pela manhã, após a primeira projeção para a imprensa de "Ensaio sobre a Cegueira", que terminou sem reações de aplauso ou vaias, Meirelles e elenco falaram aos jornalistas.
Imaginação
O diretor citou o escritor português José Saramago, autor do livro no qual o filme se baseia. "Saramago disse que o cinema destrói a imaginação e [por isso] não queria vender os direitos do livro [para a adaptação]."
Na versão de Meirelles para a trama sobre epidemia de cegueira que atinge toda uma população, exceto uma mulher (vivida pela norte-americana Julianne Moore), há momentos de breu e outros de branco total na tela, deixando a imaginação do espectador livre para preencher as cenas.
O público conta, porém, durante todo o filme com o auxílio de um som límpido e audível até os detalhes, um recurso do diretor para mostrar como se aguçam os demais sentidos dos personagens recém-cegos.
O roteirista e ator (no papel do ladrão) canadense Don McKellar disse que era também preocupação de Saramago que o filme mantivesse "o caráter alegórico" do livro, "um verdadeiro sumário do milênio", na opinião de McKellar.
A Meirelles interessava abordar "a fragilidade da nossa civilização". Para o diretor, o livro de Saramago mostra que "nós nos consideramos tão sólidos, mas, quando uma coisa desaparece [a visão], tudo colapsa".
O ator norte-americano Danny Glover, intérprete do velho com a venda, foi o mais enfático ao associar a ficção à realidade, tomando como exemplo o furacão Katrina, ocorrido em 2005 nos Estados Unidos.
"O negócio com o Katrina não é o que o governo fez ou deixou de fazer. É que aquelas pessoas [atingidas pela devastação] eram invisíveis para nós, assim como são no Iraque ou em Darfur. Nós vivemos num mundo em que não vemos pessoas", afirmou Glover.
Lionel Cironneau/AP
Fernando Meirelles (centro), com os atores Don McKellar, Alice Braga, Julianne Moore, e Gael García Bernal. Eles posam na estréia do filme "Ensaio sobre a Cegueira", que abriu o 61º Festival de Cannes, nesta quarta-feira (14)