MÁRIO RIBEIRO DA SILVEIRA nasceu em Montes Claros, MG, aos 23 de setembro de 1924. Seus pais, Reginaldo Ribeiro dos Santos e Josefina Silveira Ribeiro. Em homenagem à mulher, Reginaldo
inverteu o sobrenome do filho. O pai viria a falecer dois anos depois,
deixando a cargo da mestra Fininha, que voltou a residir com os
genitores, a criação dos seus dois rebentos, Darcy e Mário. Segundo
depoimento de um contemporâneo, "Mário - “Mário Bode” - foi um menino
traquinas, sempre encarapitado numa bicicleta velha, pegando biscates na
estação ferroviária e no hotel São José, azucrinando a vida da austera
Mestra Fininha e de seu tio mais velho, Otávio Silveira".
Conheci
o dr. Mário de menino, de festinhas de aniversários das famílias.
Simpático, sempre brincalhão. Entretanto, aos 7 ou 8 anos pude avaliá-lo
melhor. Surgiram-me umas manchas na
pele e meu pai mandou-me ao consultório do colega. Ficava ali na dr.
Santos, ao lado da casa de sua mãe. Esperei um pouco e logo ele chegou.
"O que faz aqui?" Eu, de calças curtas, apontei para as pernas: "Estou
com essas manchas..." E ele, mão no queixo, já diagnosticando: "Humm,
você nada na praça de esportes?" Passamos à sala de exames. Através de
uma lente enorme, presa a um cabinho de madeira, ele olhou as manchas,
não sei o que nelas viu, apanhou o bloco de receitas. "Diz à sua mãe
pra comprar o que vai aqui." Deu-me uma pomada ou loção amostra grátis
para friccionar sobre as manchas após os banhos, ah, dois por dia!, e me
despachou. Adorei-o como médico: não me havia dado injeção nem enfiado o
termômetro no cuzito, prática francesa ainda adotada por alguns
pediatras da época.
Marão cursou o primário
no Grupo Escolar Gonçalves Chaves, onde a mãe lecionava, o ginasial no
Instituto Norte Mineiro de Educação, iniciou o científico no Colégio
Marconi, em Belo Horizonte, e concluiu o curso no Instituto Metodista
Granbery, Juiz de Fora, MG. Diplomou-se pela Faculdade de Medicina da
Universidade Minas Gerais, turma de 1950. Aluno brilhante, trabalhou e
estagiou em laboratórios, clínicas médicas (dermatologia, obstetrícia,
hematologia, cirurgia, cardiologia, leprologia, saúde pública...) e
pronto-socorros. Foi monitor da cadeira de Anatomia Humana durante o
curso. Simultaneamente, participou de vários congressos
médicos (primeiro lugar em alguns), seminários e debates científicos.
Representou diversas vezes a faculdade em congressos da UNE e UEE -
União Nacional e Estadual dos Estudantes. Confidenciou-me meu amigo
Ucho: "Na faculdade, era conhecido como Mário "Comunista". Seus colegas de UMG e de república, durante toda a vida, o chamaram assim. Quem diria, Marão, comunista de carteirinha? Era
de mandar telegrama congratulatório para Stalin no seu aniversário:
"Parabéns, Camarada Stalin, nosso líder e Chefe Supremo!"). Mário
recebeu não poucos prêmios pelos trabalhos científicos
publicados e, coroando os estudos, através de concurso, foi interno
residente da Santa Casa de Belo Horizonte.
Anel no dedo, especializou-se
em dermatologia no Rio de Janeiro e aí começam algumas das suas.
Flanava com Darcy pela Av. Rio Branco quando disse a este: "Vou para
Montes Claros." O irmão o corrigiu: "Você vai a Montes Claros..." Mário
retrucou: "Eu vou para, porque vou pra ficar!" Enamorado por Maria Jacy
(nascida em Pedra Azul, MG, e estudante do colégio Sacré-Coeur em Belo
Horizonte), com quem viria a se casar (1951) , tiveram os seguintes
filhos, pela ordem: Pat, Fred, Ucho, Marquim, Mônica, Paulim, Marcinha e
Bertha.
Ganhou
Montes Claros com a vinda e permanência de Marão. Não há coisa aqui que
não tenha o seu dedo. Construção da praça cel. Ribeiro (1956), diretor
do Montes Claros Tênis Clube (praça de esportes) e construtor da sua
sede social e ginásio esportivo, diretor de clubes de futebol,
idealizador do primeiro edifício com elevador (Ciosa), do Automóvel
Clube (primeiro presidente), um dos fundadores da faculdade de Medicina,
Famed, seu professor titular e primeiro diretor. Mário idealizou o
crédito educativo, copiado em todo o país, e publicou "Médicos para o
Brasil". Foi paraninfo de inúmeras turmas de formandos de escolas
locais, patrono do Diretório Acadêmico da escola de medicina de Montes
Claros e da sua primeira turma de formandos. Educador
nato, quando assessor da Casa Civil do governo João Goulart levantou
verbas para prefeituras e escolas de Montes Claros e norte de minas ,
ambulância para a Santa Casa e outros benefícios.
Como empresário, chegou a possuir quatorze salas de cinema na região,
um cortume e, posteriormente, uma fazenda na área chamada Ilha, no
município de Itacarambi, às margens do São Francisco. Deu à gleba o nome
de Ipueira, devido às peculiaridades do local. Sobre a sua experiência
como médico-fazendeiro, relata o próprio:
"Normalmente, de 15 em 15 dias, saimos de Montes Claros com a
caminhoneta cheia de víveres, de remédios para todas as mazelas, 10
litros de vinho e 200 pães. Enquanto minha mulher anda a cavalo,
fiscaliza cercas, plantações, faz acertos com o encarregado, determina
isso e aquilo - ela é quem entende de fazenda -, eu faço a medicina mais
gratificante de minha vida profissional. Atendo a cablocada amiga e lhe
sirvo pão e vinho, como Marcelino. As doenças são sempre as mesmas:
verminoses, anemias, chagas, parasitoses cutâneas, gripe, ou algum
acidente de trabalho. Ouço suas queixas, dou-lhes os remédios indicados -
amostras que recebo de laboratórios e de colegas."
Como político, em 1958 Marão é eleito à Câmara Municipal. Também
eleito, prefeito, o seu primo Simeão Ribeiro Pires. Em 1962, pelo
Partido Republicano (PR) é candidato a vice-prefeito na chapa encabeçada
por João Valle Maurício. Em partido político oposto (PTN), o imbatível
Pedro Santos, então vice-prefeito de Simeão e vitorioso no pleito.
Cassado pelo golpe militar de 1964, Marão foi preso várias vezes e
respondeu a IPMs que nada apuraram contra a sua pessoa**. Perdeu os
direitos políticos, cargos públicos e acesso a bancos oficiais. Mas
continuou influindo - e como! - na política de Montes Claros. Em 1979,
anistiado por Decreto Federal, vai à luta a céu aberto. Eleito
vice-prefeito na chapa encabeçada pelo jovem Luís Tadeu Leite, MDB
(Movimento Democrático Brasileiro), em 1981, suas atribuições incluíam a
gestão das pastas da Saúde e Educação. Realizou um rendoso trabalho,
especialmente na saúde, quando se destacou como um dos idealizadores
nacionais do SUS. Em 1988 é eleito prefeito e suas maiores realizações
continuaram sendo nas referidas áreas. Construtor de escolas, acabou de
vez com o velho problema da procura por vagas nas escolas públicas
municipais - estas passaram a exceder à demanda. Na sua gestão - quatro
anos - o número de alunos matriculados nesses educandários passou de
5.235 para 22.150... Mário encerrou sua vida pública como secretário de
estado do Trabalho e Ação Social, governo Hélio Garcia (1986). Em 7 de
dezembro de 1999 a cidade assistiu, consternada, ao seu desaparecimento, ocorrido na Santa Casa de Misericórdia de Montes Claros.
Embora sendo homem de forte personalidade, não sabia bem o que fazer com o seu visual, ou look,
como queiram. Ao longo do tempo apresentou-se com vários perfis: ora
cabelos meio compridos, em seguida corte militar ou outro; ora barbado,
depois escanhoado. No trajar, quando não estava de branco, médico que
era, adotou por uma época o slack, mas geralmente vestia-se sem
afetação. Odiava sapatos com cadarços e gravata. Nos botecos, nas rodas
que liderava, comentavam de tudo. Sempre encomendava aos gravatinhas -
assim chamava os garçons - o de comer variado. Aos que só bebiam,
advertia: "Quem bebe sem comer morre cedo." Dito e certo, vários de seus
amigos se ausentaram para sempre das happy-hours.
Marão tinha a exata dimensão do poder. "Tá vendo todos esses
puxa-sacos? Pois bem, quando eu sair da prefeitura sequer me
cumprimentarão." Quando enfrentou a primeira greve de servidores, saiu
andando pela prefeitura às moscas, espiando sala por sala. Na rua,
centenas de manifestantes. Passando por uma das salas, deu com uma moça
na máquina de escrever. "O que está fazendo aqui, minha filha? Tá
todo mundo lá embaixo, vai pra greve, o direito é seu..." Outra
característica de Mário era a pontualidade. Chegava à prefeitura às 8 da
manhã, saía ao meio-dia para o almoço, retornava às 14h e, após as 17,
impaciente, consultava insistentemente o relógio. Às 18h, no prego,
tomava o elevador. Ia ao encontro dos amigos no seu bar predileto,
Quintal.
Colhi algumas mais de Marão da bela crônica escrita por Pat pouco tempo após o encantamento do pai. Vamos a elas:
- Podia ser melhor...
- O importante não é ser honesto, tem que ser e parecer ser honesto (lera sobre César...).
- Baixa, espírito de dona Marina! (quando se falava mal de alguém - ela jamais fala).
- Se tiver de falar de alguém, fale bem.
- Não julgue pelos defeitos, julgue pelas qualidades.
- Tente entender: coloque-se no lugar dele...
- Temos de ser amigos e solidários é na adversidade.
- Deus dá pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão.
- Tá na hora da bóia!
- Só podem comer depois de rezar (nas refeições em família).
- Ruim com elas, pior sem elas. A estabilidade do casamento está na assessoria; empregada tem sempre razão.
- Toda viúva é feliz. Todo viúvo é ridículo.
- Até hoje não me esqueço: quando era menino, toda mulher que fumava e bebia era rapariga.
- A coisa mais sensível no homem não é o sexo, é o bolso.
- Torço para dois times: para o Atlético e contra o Cruzeiro.
- Tenho nojo de politicagem.
- Não se come a carne onde se ganha o pão.
- O trem só chega na estação pelo trilho.
- Passarinho não anda com gato.
- Só vou se tiver gelo (pro seu uisquinho, quando convidado para uma casa mais afastada do centro).
- Êh! Festas de agosto! (mesa farta).
- Estudar é a coisa mais difícil que existe: tudo chama para fazer o contrário.
- Quando um amigo me diz que o filho quer ser artista, eu já começo a rezar por ele.
- Quer ver seu filho não passar no vestibular? Dê-lhe um violão.
- A nossa arma é o voto. Seu título eleitoral é uma metralhadora! (em comícios)
- Honesto vota em honesto. O resto vota no resto.
- Quem compra votos vende o seu (não se lembrava do autor).
- O dinheiro do povo é sagrado.
- Inimigos, a gente tem de anestesiar.
- Se a gente não aguenta, quem vai aguentar?
- Cuidado! A carne é fraca.
- O maior barbeiro do Brasil sou eu (como motorista).
- Multidão é um amontoado de ninguém. Pra aplaudir ou vaiar é daqui pra ali.
- Tenho duas alegrias na vida: o dia que Darcy chega e o dia em que vai (amiúde o irmão lhe cobrava fazimentos...).
- O melhor negócio é prestar serviço.
- Rico é aquele que gasta menos do que ganha-Tenho duas alegrias na vida: o dia que Darcy chega e o dia em que vai (o irmão cobrava-lhe o fazimento de coisas...).
- Maria não conhece marido mais liberal do que eu.
- Se tivesse de me casar de novo, casaria mil vezes com Maria; ela, "nenhuma" comigo.
- Jesus de Nazaré, me dê fé, tire este enfermeiro do meu pé.
O cidadão do mundo, Mário Ribeiro da Silveira, foi laureado, por
serviços prestados à comunidade, com significativas medalhas, dentre as
quais duas da Inconfidência Mineira, a Santos Dumont e a da Faculdade de
Medicina. A Academia Mineira de Medicina outorgou-lhe o diploma de
Mérito Médico. Em 1994, foi convidado para proferir
palestra sobre o tema “Educação e Saúde no Brasil: Políticas e Práticas”
no Instituto de Educação da Universidade de Londres. E, em 1997, recebeu a Medalha de Ouro de Montes Claros.
Bem, se é que já posso encerrar, finalizo parafraseando a autora
francesa Marguerite Yourcenar (Memórias de Adriano): A mente de Marão
assemelhava-se a um vasto castelo que ao proprietário não foi possível
mobiliar por inteiro.
* Agradeço ao dr. Hermes de Paula pelo seu livro "A
medicina dos médicos & a outra..." Imprensa Universitária UFMG,
1982, e a Patrícia Ribeiro Barbosa pela crônica, o que contribuiu para o
avivamento de minha memória.
**
Para maior complementação deste texto, recomendo, vivamente, a leitura
do Documento nº 018/116 do Serviço Nacional de Informações, SNI, sobre
as atividades de Marão como "ferrenho" comunista. Para tal, acesse o
sítio www.montesclaros.com , vá ao menu > Colunistas > Ucho Ribeiro.