20.5.12

DIDU, algumas lembranças HTF

MALLARMÉ, Sthéphane/sobre Rimbaud






"Ele, clarão de um meteoro iluminado


sem outro motivo a não ser sua própria presença,


se vai só a se extinguir."





Meu querido irmão Roberto, Didu para os amigos, muitos, faria em fevereiro último 60 anos. Peça rara, raríssima - consenso - se foi, precocemente, aos 37. Nas teias da vida chocou-se com uma locomotiva vinda em sentido oposto.
   Quando menino, ainda no marista São José, sabia de cor e salteado todas aquelas coisas maçantes que quase ninguém sabia ou desejava saber: biografias de santos, datas históricas e, cacete!, nomes de rios e mares e capitais mundo afora. Fazia análise sintática! De textos de Camões!, a quem não poucos odiavam e chamavam de o Caolho. Quando, em casa, dava-se a declamar poesias, meu pai ficava de queixo caído: "Esse menino é um gênio!" Desnecessário encaminhá-lo a testes vocacionais, o boletim escolar apontava-lhe o destino: em matemática, desenho (geométrico), educação física (não ia às aulas), ciências, música, caligrafia, ZERO; em história, geografia, português, inglês, francês, religião, DEZ. Comportamento, idem. Dedicava-se somente ao que gostava, daí a sua média mensal sempre baixa. Mas não chegou a tomar bomba no ginásio.
   Na adolescência, como bons irmãos que éramos, começamos a divergir em alguns pontos. Ele, apaixonado, fanático por futebol, assinava a revista Placar e não deixava escapar um parágrafo sequer dos cadernos de esportes do Estado de Minas e do Jornal do Brasil. Seus novos santos eram agora jogadores. Dos favoritos sabia tudo: nome completo!, local e data de nascimento, prato e perfume prediletos, carreira - veio-de-onde, vai-pra-onde, valor do passe..., estado de saúde - foi contundido, quebrou a perna, o braço, levou uma cotovelada no olho, operou os meniscos... Uma coisa! Quando reclamei daquela inutilidade cultural, ele rebateu marcando gol: "Uai, você não sabe o nome completo e o local de nascimento de todos os Beatles? Que Ringo Starr toma uísque com Coca-Cola? Que John, abandonado pela mãe separada do marido, foi viver com a tia Mimi?
   Sua paixão futebolística tocou a trave da loucura ao resolver pintar o quarto de vermelho e preto. Cores do seu adorado Flamengo, tri-campeão carioca de 53-54-1955, feito histórico que ele não se cansava de repetir. Nos outros times, com raras exceções, só havia pernas de pau, juízo que modificava se viessem a envergar a camisa do Mengo...
   Até curti a ideia de ver nosso quarto rubro-negro, mas mamãe vetou-a: "Aí é demais!" Minha bisavó Carlota, que morava conosco, veio a reboque: "Oh, meu filho, não faça isso, são cores do demônio, do inferno, vou lhe mandar benzer." Ele e vovó Carlota eram parceiros no jogo do bicho: ela interpretava os sonhos e financiava o palpite, ele ia ao apontador, o que para uma senhora de idade não ficava bem. Quando ganhavam dividiam o prêmio e eu ficava com uma ponta de inveja, mas acabava embolsando uns trocados.
   Jogo, outra das paixões do Didu adolescente, fosse qual fosse, lúdico ou contraproducente: futebol de botão, damas, xadrez, dados, ludo-real, dominó, varetas, víspora, banco imobiliário (o War viria mais tarde, mas ele ainda o alcançou), roleta, buraco em família, sete-e-meio, vinte-e-um, caixeta e pôquer com os amigos, esses últimos apostado. Para o pôquer - lembram os parceiros - paramentava-se com sua camisa-polo do Flamento, acendia uma vela sobre o aparador da sala de jantar e entrava em campo para ganhar, frio, calculista, blefador.
   Separamo-nos, enfim, de quarto. Fui para um outro com os meus rocks, ele permaneceu no nosso com o seu futebol. Logo encontraria no meu irmão-de-leite, Sérgio Deusdará, um substituto. Nos fins de semana ouviam, num rádio portátil enorme, de seis ou oito pilhas, todos os jogos possíveis. E os gritos? Não ficavam nisso. Encerradas as partidas, passavam aos comentários e mesas redondas, um saco! Eu ficava por ali, só, e os dois metidos no quarto com sucos e biscoitos. Devido ao avançado da hora, Sérgio acabava por dormir em minha antiga cama. Seus pais, doutor Deusdará e Toinha, amigos dos meus, sabiam que de sábado à tarde a domingo à noite com o filho não podiam contar. Vinguei-me: tão logo comecei a frequentar festinhas não dava mais bola pra eles.
   Depois Didu mudou, por volta dos seus 14, 15 anos. Continuou Flamengo, sempre, mas encaixotou sua coleção de Placar e passou a ler Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Vinícius, Drummond e outros poetas mais sérios dos que os lidos até então. De mero apreciador de cinema evoluiu para a categoria de cinéfilo, de carteirinha. Mesmo sem alcançá-los, que idade nem maturidade tinha para isso, só falava em Goddard, Glauber, Welles, Pasolini, Antonioni, Fellini, e no nosso Carlos Alberto Prates, a quem chamava intimamente Charles (haviam ficado amigos por ocasião da filmagem local de Os marginais). John Ford, Howard Hawks, Elia Kazan? Apenas grandes mestres do passado...
   Assim como anotava em uma caderneta destinada a esse fim todos os livros lidos - título, autor, editor, edição etc. -, com a sua cotação final, bom ou mau, abriu outra para os filmes. Ali se podia ver o título em português e no original, diretor, produtor, atores principais, coajuvantes, roteirista, fotógrafo, cinegrafista, enfim, tudo o que na película merecia créditos. Acrescentava o nome da sala exibidora da fita e o preço do ingresso! Finalmente a sua cotação, que ia de uma a cinco estrelas. Em Belo Horizonte, para onde foi pouco depois dessa época, tornou-se assinante dos Cahiers du Cinéma por algum tempo e consumidor de livros e revistas especializados que começavam a surgir.
   Em música, gostava de canções passadas - Billie Holiday, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Cole Porter, Sinatra, Ray Charles, The Platters, Bill Haley, Elvis e outros -, do rock inglês que assolava a nação, mas tinha especial queda pela nascente bossa-nova, com João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius, Toquinho, Ellis e Nara e Chico, que amava.
   Roberto ou Didu, como queiram, esteve pouco tempo entre nós, um cometa, mas deixou saudades e muitas outras lembranças. Viveu! Ficam estas para uma outra oportunidade.