21.9.10

MORRE O AMIGO ANDREY CHRISTOFF

Publicado no jornal O NORTE, caderno Opinião, edição de 20.09.2010

A Andrey Christoff
Samuel Sousa Figueira
Superintendente da Santa Casa

A arte silencia. Alça voo simples e docemente, como se a ninguém quisesse incomodar. Esvai-se agradecida, sem queixa e sem barulho, do corpo, cuja mão trêmula, outrora instrumento desenvolto, já não respondia, eficazmente, à chama vigorosa do gênio que nela, sobre o papel e a prancheta, se realizava. Como a triste resignação própria dos que alcançaram a sabedoria, a alma desliga-se do alquebrado corpo, que há muito se arrastava trôpego ao sobrepeso progressivo do mal de Parkinson. Apaga-se finalmente, ao sopro de leve brisa, a luzinha tênue do círio, para libertar o fulgor indelével de um dos mais iluminados espíritos com o qual tive a honra de conviver.
A lágrima ainda está suspensa. Não consigo desatar o choro. O inusitado modo em que se deu sua partida impacta os amigos com estranha sensação de choque, deixando presa ao susto e aos olhos a habitual lágrima solidária.
Andrey Christoff foi mais que um excelente arquiteto, um artista magnífico da pena e da argamassa, um amigo singular, na sua capacidade discreta de se relacionar com todos ao seu redor.Foi, sobretudo, um exemplo ímpar de pessoa humana. Admirável, tanto pela dimensão de seu talento, quanto pela humildade de seu espírito.
Discreto no acomodar em si suas dores e penas, particularmente a mim não conseguia dissimular. Pelas janelas do olhar triste e do sorriso opaco, vislumbrava a luta que travava na alma para não as deixarem escapar, pelo simples propósito de não perturbar a alegria profusa da vida à sua volta.
È pouco reconhecer-lhe um homem íntegro. Só os verdadeiramente sábios conseguem tanta disciplina. E por dizer em sabedoria, lembro-me do saudoso amigo Georgino Jorge de Souza quando, em um de nossos colóquios de discípulo e mestre, a mim esclareceu o que meu espírito, tacitamente já sabia: “A honra, meu amigo, é um bem que jamais pode ser negociado, porque ela não nos pertence. Pertence a nossa família, a nossos filhos e a nossos amigos”.
Assim refletindo, caro Andrey, permita ser seu testamenteiro para a entrega simbólica, a seus velhos pais, a seus irmãos, a sua esposa, e, principalmente, a seus filhos, da honra intacta que lhe dignifica a trajetória pela vida.
Os bens materiais são corruptíveis. Os imateriais, ao contrário, ficam a salvo da degradação temporal. Seus netos que certamente virão amanhã, ainda que não tenham o calor presencial do seu colo, haverão de sentir o calor gostoso das histórias do seu avô, quanto à probidade, à generosidade, à genialidade, à sabedoria e à honradez, que, juntas, se condensavam em sua pessoa.
Vá em paz, amigo. Todos que tivemos a graça de conviver com você guardaremos com muito carinho a lembrança de sua presença. Negar-nos a oportunidade de velar-lhe o corpo talvez tenha sido o seu último gesto de originalidade e leveza. A lágrima que teima em não rolar é um símbolo da benevolência da sua pessoa.
Jamais esqueço da espontaneidade de sua autodefinição. Determinado dia, com a urgência que me caracteriza na função de administrador, cobrei-lhe a conclusão de um sem número de projetos arquitetônicos dos quais você humildemente não houvera contestado, embora humana e artisticamente impossíveis de serem cumpridos.” Samuel, eu sou aquele tipo de pessoa incapaz de dizer um não, embora grande parte das vezes não consiga, mesmo que me esforce, cumprir o sim”.
O seu tempo, meu amigo, não é o nosso tempo. Somos passageiros sem importância, exatamente porque concedemos excessiva importância ao tempo, nosso carcereiro. O seu tempo não é do de Cronos. Não se conta pelo ritmo inalterável dos ponteiros do relógio. È o de Kairós, e se mede, em vida, pela arritmia emocional das batidas do coração. Hoje, quando não mais se subordina a Cronos, tampouco a Kairós, o seu tempo passa a ser o tempo de Deus.

Até breve, meu admirável amigo!
Feliz retorno à eternidade!

AO MURAL DO MONTESCLAROS.COM
Mensagem N° 61469
De: Alves - Data: 17/9/2010 23:01:54
Cidade: Montes Claros
Centenas de pessoas – sem prévia convocação – foram ao cemitério neste fim de tarde se despedir de Andrey Ribeiro Cristoff, que cedo partiu. Deixou-nos aos 52 anos, jovem. Há dois dias, não era visto. Havia saído de casa para render a mãe na cabeceira do pai, o médico Konstantin Cristoff, internado há semanas na Santa Casa, num quadro de pneumonia. Procurararam-no. O acaso ajudou a achá-lo na porta da Santa Casa, ali diante da igrejinha minúscula. Estava no carro, tombado sobre o banco do passageiro. Provavelmente morreu na noite de terça-feira, quando chegou para substituir a mãe nos cuidados com o pai enfermo. Tinha mal de Parkinson. Tomava medicamentos que lhe davam sono. Extenuado, depois de noites de vigília, talvez tenha adormecido logo que estacionou o veículo. De um sono, passou a outro – supõe-se. Exatamente na porta do hospital que, como arquiteto, ajudou a modernizar e a humanizar. É o resumo.
A notícia que ontem à noite circulou como uma navalha reuniu os amigos, os admiradores, os colegas, familiares, convocou a unanimidade que reconhece nele o arquiteto mais inspirado de sua geração. Tudo afinal coube nas três palavras singelas que iluminam o seu legado: o bom Andrey. As circunstâncias não permitiram a realização do velório, mas o Cemitério – que no grego sugere dormitório - estava cheio dos que o admiram, e que por uma cadeia invisível se movimentaram para não faltar. Padre Henrique fez a prece. A filha falou do pai brincalhão. E o corpo foi depositado na campa do avô legendário, o Sr. Cristo, pai de Konstantin, búlgaro de nascimento, de brancas barbas, e olhar severo, imigrante, patrono do mercado de Montes Claros, e que ensinou a cidade, ensinou a todos nós, a plantar e colher frutas, verduras e também flores, no frescor da manhã que faz o dia começar, e a vida a recomeçar. Padre Henrique, sempre ele, disse alguma coisa que rebuçou o clima de justificada prostração, desolação, substituído pela aragem de esperança, vinda não se sabe de onde, que tudo modificou. O Bom Andrey seguiu debaixo da admiração de todos, lavado de suas dores, alegre, risonho, gentil; como sempre amável, afável. Bom, bom e bom.