27.8.10

EU, MEU PRIMO CABARET E O REI.**



Fernanda Tourinho
Salvador, agosto de 2010
1971, Salvador, Bahia. Em 3 de janeiro completaria 10 anos e pedi a meu pai uma vitrolinha portátil de presente de aniversário. Tempos difíceis, meu pai desempregado, buscando acertar um trabalho autônomo, abrindo uma sociedade para estabelecimento de escritório de contabilidade. Família grande, cinco irmãos em escadinha, eu a quinta filha, primeira filha-mulher como se diz no Nordeste. A vitrola era artigo de luxo naquele momento. Em tempos mais prósperos havia na antiga casa um móvel radiola, que abertas as portas fazia deslizar o prato e a agulha, para a inserção de LPs onde se podia escolher as rotações. Fora totalmente destruído por mal uso da criançada intempestiva, os LPs virando discos voadores pela casa,principalmente durante as quarentenas de minha mãe, que parida preservava-se no andar de cima a cuidar do mais novo rebento. Anos mais tarde meus irmãos, já adultos e sempre inventivos, trataram de recuperar a radiola, descartando o móvel e expondo estranho equipamento de válvulas aparentes acoplado a moderno amplificador e poderosas caixas de som.
Janeiro era tempo de festa na família. Meus tios e primos que moravam em outros estados vinham de férias para Salvador e este encontro fazia a nossa casa viver momentos de intensa alegria, ainda mais cheia e barulhenta do que normalmente era. Entre eles, um se destacava para mim por sua simpatia e seu jeito de irresistível playboy às avessas: irresponsável, meigo, galanteador, bem falante, gozador. Um homem já, fumava, bebia, namorava, dirigia. Bem nascido e com grana no bolso, vivia de calça lee desbotada e camisetas esgarçadas, descoradas, com furos nas mangas e ruturas nas golas. Keds surrados, longos cabelos. E um apelido que aguçava minha curiosidade infanto-juvenil sobre suas aventuras - Cabaré.
Hospedado em nossa casa naquele início de ano, pode acompanhar as negativas de meu pai em dar-me a tão sonhada vitrolinha, talvez esperançoso por uma desistência que o livraria de despesa inoportuna - 3 de janeiro é uma semana após o Natal, época de grande desfalque para o Noel de 6 filhos. Cabaré exultou ao vê-la chegar. Tão feliz quanto eu ajudou-me a abrir o presente e retirar uma caixa retangular de menos de 50 centímetros, que ao ser destravada nas laterais dividia-se em caixa de som e prato com agulha, com disponibilidade para ligação elétrica ou bateria de duas pilhas, daquelas grandes e gordas. Nossa alegria sofreu um instantâneo baque: não tínhamos discos para estrear o presente! Dos remanescentes OVNIs apenas um LP de Luiz Gonzaga - Xamego da Vovó, e outro com o melhor de Jackson do Pandeiro, os preferidos de Tio Lizer, como carinhosamente chamava meu pai antes de rebatizá-lo Mangangã, anos mais tarde, fazendo seus filhos assim chamá-lo até sua morte. Mas éramos jovens e ignorantes demais para apreciar tamanha genialidade... E Cabaré completou o presente mais bacana de minha vida oferecendo-se para comprar um disco de minha preferência naquele mesmo dia. Nem pensei duas vezes, escolhi o recém lançado LP de Roberto Carlos, menos pelo sucesso de Debaixo dos Caracóis, a famosa canção composta para falar do exílio a que a ditadura condenara o mano Caetano, mais por conter o hit do momento Eles Estão Surdos, que embalava as festinhas regadas a refrigerantes Fratelli Vitta, sabores guaraná e pêra, um requinte da maior fábrica de cristais da Bahia. Cabaré esboçou cara feia. Na certa já ia longe seu deslumbramento com o Rei, e em nenhum momento confidenciou-me que dele partilhara intimidade, gozando de audiência régia que resultou em mimos do mecenas. Ingrato, nada revelou da importância de RC para a consolidação dos Brucutus em Moc City. Mas, homem de palavra, saiu e comprou meu LP, que autografou carinhosamente, tendo aproveitado a oportunidade para adquirir um do Jethro Tull e, mineiramente, propôs que a cada faixa do disco de Roberto que eu escutasse em sua presença, corespondesse a ele o direito de uma faixa de seu moderno e barulhento LP.. Sem dúvida uma grande sacada para salvar seu verão baiano, regado a uma preguiça de mesma naturalidade , que lhe percorria o sangue. Qual, nunca enquanto esteve conosco naquelas tardes quentes da Pituba consegui ouvir sequer Detalhes, pois que a vitrolinha não parava de repetir um "So uso tally hô, so uso tally hô, tally hô nan nan nan nan" que levava concomitantemente ao delírio e ao desespero meus irmãos e minha mãe. Passou-me assim a perna o safado, não sabendo ele que teria vivido toda a vida ouvindo aquele disco, feliz em tê-lo por perto.