O negócio das prisões
Laurindo Dias Minhoto
Folha de S. Paulo
09.05.2008
Converter as cadeias do Brasil em negócio pode muito bem significar mais água para fazer girar o moinho da barbárie
NÃO PASSOU despercebido ao leitor desta Folha que a atual polêmica em torno da privatização das prisões transcende em muito os limites da ética. Nos EUA, país pioneiro na adoção do modelo, questões de natureza jurídica, econômica e política informam a discussão pública com igual intensidade. Um breve olhar sobre essa experiência pode contribuir para o aprofundamento do debate brasileiro. Do ponto de vista jurídico, discute-se a legalidade da transferência da administração penitenciária a agentes privados. O contencioso envolve desde a questão da natureza jurídica da execução da pena de prisão, passa pelo monopólio estatal do uso legítimo da força e pela regulamentação do trabalho do preso e vai até o estatuto da responsabilidade civil do Estado e da iniciativa privada em processos envolvendo superpopulação, maus-tratos e rebeliões. Vale mencionar conhecida afirmação de um agente correcional privado: "Em meu estabelecimento, eu sou a Suprema Corte". Como se sabe, a apuração de infrações e a aplicação de punições disciplinares aos detentos influencia diretamente o processo de concessão de benefícios estipulados em lei. É o caso de lembrar também que, em instituições totais como a prisão, o limite entre discricionariedade e arbítrio é sempre movediço. Do lado econômico, a polêmica não é menos intensa. Num cenário de superpopulação e intervenção judicial no sistema, a redução dos custos do encarceramento constituiu uma das principais razões invocadas pelo governo para justificar a privatização. Porém, as prisões privadas não têm prestado serviços necessariamente mais baratos nem mais eficientes, reproduzindo os problemas estruturais que atravessam o setor público. Uma longa lista de práticas gerenciais ineptas pode ser detectada na experiência correcional privada estadunidense, englobando violência de funcionários contra detentos, corrupção, presença de drogas nos estabelecimentos e fugas reiteradas. Nota-se ainda uma série de tensões entre o móvel da lucratividade e os objetivos da política penitenciária. O modelo de parceria prevalecente nos EUA é o da remuneração das empresas com base no número de presos custodiados. Cadeias superlotadas propiciam taxas de retorno mais generosas a seus administradores. A corrida em direção ao corte de custos tem levado à contratação de pessoal sem preparo, aumentando a possibilidade de conflitos. Outro ponto é o trabalho prisional, realizado em condições de extrema precariedade e exploração. Por causa da pressão que exerce sobre a massa salarial, tem esbarrado no movimento organizado de trabalhadores livres. Em termos políticos, a privatização de prisões coincide, não por acaso, com a emergência do fenômeno do encarceramento em massa, uma espécie de rebarba keynesiana na ponta punitiva do Estado que sobrevive ao fordismo. Configurando-se em ritmo acelerado como a meca do Gulag global, a democracia norte-americana encabeça o ranking do encarceramento, com mais de 2 milhões de detentos e uma acachapante taxa de mais de 700 presos por 100 mil habitantes, desbancando afiados contendores da "corrida carcerária", como a Federação Russa (635), as Ilhas Cayman (600) e a África do Sul pós-apartheid (405). Os principais efeitos do encarceramento em massa são: o agravamento do déficit público (248% de aumento em prisões na primeira década de experimento privado); a realocação do fundo público da área social para o sistema de Justiça criminal; a colonização da cultura comunitária pela cultura da prisão; o aumento relativo do crime, tendo em vista as altas taxas de reincidência; a destituição do direito de voto de parcela significativa da população; o aprofundamento das divisões sociais (dada a tremenda disparidade no encarceramento de negros e latinos em relação a brancos, já há quem veja na política penal dos EUA uma autêntica "ação afirmativa carcerária"). Ante o estado de calamidade pública em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro, todo cuidado é pouco na análise de supostas panacéias, como privatização de presídios. Tendo em vista a complexidade das questões que envolve, bem como a nossa herança autoritária de controle social e violência privada -num país em que as prisões funcionam como campos de concentração para setores das classes baixas-, converter as cadeias do Brasil em negócio pode muito bem significar mais água para fazer girar o moinho da barbárie.
Laurindo Dias Minhoto
Folha de S. Paulo
09.05.2008
Converter as cadeias do Brasil em negócio pode muito bem significar mais água para fazer girar o moinho da barbárie
NÃO PASSOU despercebido ao leitor desta Folha que a atual polêmica em torno da privatização das prisões transcende em muito os limites da ética. Nos EUA, país pioneiro na adoção do modelo, questões de natureza jurídica, econômica e política informam a discussão pública com igual intensidade. Um breve olhar sobre essa experiência pode contribuir para o aprofundamento do debate brasileiro. Do ponto de vista jurídico, discute-se a legalidade da transferência da administração penitenciária a agentes privados. O contencioso envolve desde a questão da natureza jurídica da execução da pena de prisão, passa pelo monopólio estatal do uso legítimo da força e pela regulamentação do trabalho do preso e vai até o estatuto da responsabilidade civil do Estado e da iniciativa privada em processos envolvendo superpopulação, maus-tratos e rebeliões. Vale mencionar conhecida afirmação de um agente correcional privado: "Em meu estabelecimento, eu sou a Suprema Corte". Como se sabe, a apuração de infrações e a aplicação de punições disciplinares aos detentos influencia diretamente o processo de concessão de benefícios estipulados em lei. É o caso de lembrar também que, em instituições totais como a prisão, o limite entre discricionariedade e arbítrio é sempre movediço. Do lado econômico, a polêmica não é menos intensa. Num cenário de superpopulação e intervenção judicial no sistema, a redução dos custos do encarceramento constituiu uma das principais razões invocadas pelo governo para justificar a privatização. Porém, as prisões privadas não têm prestado serviços necessariamente mais baratos nem mais eficientes, reproduzindo os problemas estruturais que atravessam o setor público. Uma longa lista de práticas gerenciais ineptas pode ser detectada na experiência correcional privada estadunidense, englobando violência de funcionários contra detentos, corrupção, presença de drogas nos estabelecimentos e fugas reiteradas. Nota-se ainda uma série de tensões entre o móvel da lucratividade e os objetivos da política penitenciária. O modelo de parceria prevalecente nos EUA é o da remuneração das empresas com base no número de presos custodiados. Cadeias superlotadas propiciam taxas de retorno mais generosas a seus administradores. A corrida em direção ao corte de custos tem levado à contratação de pessoal sem preparo, aumentando a possibilidade de conflitos. Outro ponto é o trabalho prisional, realizado em condições de extrema precariedade e exploração. Por causa da pressão que exerce sobre a massa salarial, tem esbarrado no movimento organizado de trabalhadores livres. Em termos políticos, a privatização de prisões coincide, não por acaso, com a emergência do fenômeno do encarceramento em massa, uma espécie de rebarba keynesiana na ponta punitiva do Estado que sobrevive ao fordismo. Configurando-se em ritmo acelerado como a meca do Gulag global, a democracia norte-americana encabeça o ranking do encarceramento, com mais de 2 milhões de detentos e uma acachapante taxa de mais de 700 presos por 100 mil habitantes, desbancando afiados contendores da "corrida carcerária", como a Federação Russa (635), as Ilhas Cayman (600) e a África do Sul pós-apartheid (405). Os principais efeitos do encarceramento em massa são: o agravamento do déficit público (248% de aumento em prisões na primeira década de experimento privado); a realocação do fundo público da área social para o sistema de Justiça criminal; a colonização da cultura comunitária pela cultura da prisão; o aumento relativo do crime, tendo em vista as altas taxas de reincidência; a destituição do direito de voto de parcela significativa da população; o aprofundamento das divisões sociais (dada a tremenda disparidade no encarceramento de negros e latinos em relação a brancos, já há quem veja na política penal dos EUA uma autêntica "ação afirmativa carcerária"). Ante o estado de calamidade pública em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro, todo cuidado é pouco na análise de supostas panacéias, como privatização de presídios. Tendo em vista a complexidade das questões que envolve, bem como a nossa herança autoritária de controle social e violência privada -num país em que as prisões funcionam como campos de concentração para setores das classes baixas-, converter as cadeias do Brasil em negócio pode muito bem significar mais água para fazer girar o moinho da barbárie.
Prisão abusiva
Editorial
Folha de S. Paulo
09.05.2008
A JUSTIÇA não se faz em espetáculos de execração, como o transmitido ao vivo, em rede nacional, na noite de quarta. A humilhação a que foram expostos o pai e a madrasta da menina Isabella, brutalmente assassinada aos 5 anos, funciona como punição cruel e indelével, impingida antes e a despeito do pronunciamento da única fonte legítima para atribuir culpa neste caso, o Tribunal do Júri.O magistrado que decretou a prisão preventiva do casal baseou sua decisão no objetivo de preservar a ordem pública. Não que o pai e a madrasta ameacem outras pessoas nem que planejem fugir: o caso, escreveu o juiz, "acabou prendendo o interesse da opinião pública", a qual "espera uma resposta" do Judiciário. Frustrar essa expectativa seria abalar a ordem pública, pois solaparia a confiança na Justiça.Trata-se de interpretação que menospreza, em nome de um interesse coletivo bastante difuso, o direito concreto do indivíduo a proteção contra atos abusivos do Estado e da coletividade. Além disso, o juiz fez claro prejulgamento dos acusados, ao desqualificá-los como "pessoas desprovidas de sensibilidade moral".Réus na ação penal, o pai e a madrasta da garota assassinada alegam inocência. Há indícios periciais que contrariam a versão do casal, assim como existem falhas no inquérito. Não há mal nenhum em que aguardem o julgamento em liberdade.Concorde-se ou não com a prisão preventiva, a imagem e a integridade física do casal precisariam ter sido protegidas pela polícia. As autoridades estavam obrigadas a frustrar a expectativa da mídia, mas colaboraram ativamente para o show de truculência que foram a prisão e a transferência de duas pessoas que não ofereciam risco.Esse tipo de ação mercurial, marqueteira, das autoridades pode saciar desejos primitivos de vingança, mas não vai diminuir o descrédito na Justiça. Um processo rápido, bem assentado em provas, em que a ampla defesa não se confunda com protelação prestaria um serviço efetivo. Casos de homicídio que permanecem inconclusos por oito, dez anos após o crime abalam, estes sim e de modo duradouro, a imagem do Poder Judiciário.A pirotecnia e o massacre do direito de defesa que se verificam no caso Isabella não contribuem em nada para melhorar esse quadro.
Editorial
Folha de S. Paulo
09.05.2008
A JUSTIÇA não se faz em espetáculos de execração, como o transmitido ao vivo, em rede nacional, na noite de quarta. A humilhação a que foram expostos o pai e a madrasta da menina Isabella, brutalmente assassinada aos 5 anos, funciona como punição cruel e indelével, impingida antes e a despeito do pronunciamento da única fonte legítima para atribuir culpa neste caso, o Tribunal do Júri.O magistrado que decretou a prisão preventiva do casal baseou sua decisão no objetivo de preservar a ordem pública. Não que o pai e a madrasta ameacem outras pessoas nem que planejem fugir: o caso, escreveu o juiz, "acabou prendendo o interesse da opinião pública", a qual "espera uma resposta" do Judiciário. Frustrar essa expectativa seria abalar a ordem pública, pois solaparia a confiança na Justiça.Trata-se de interpretação que menospreza, em nome de um interesse coletivo bastante difuso, o direito concreto do indivíduo a proteção contra atos abusivos do Estado e da coletividade. Além disso, o juiz fez claro prejulgamento dos acusados, ao desqualificá-los como "pessoas desprovidas de sensibilidade moral".Réus na ação penal, o pai e a madrasta da garota assassinada alegam inocência. Há indícios periciais que contrariam a versão do casal, assim como existem falhas no inquérito. Não há mal nenhum em que aguardem o julgamento em liberdade.Concorde-se ou não com a prisão preventiva, a imagem e a integridade física do casal precisariam ter sido protegidas pela polícia. As autoridades estavam obrigadas a frustrar a expectativa da mídia, mas colaboraram ativamente para o show de truculência que foram a prisão e a transferência de duas pessoas que não ofereciam risco.Esse tipo de ação mercurial, marqueteira, das autoridades pode saciar desejos primitivos de vingança, mas não vai diminuir o descrédito na Justiça. Um processo rápido, bem assentado em provas, em que a ampla defesa não se confunda com protelação prestaria um serviço efetivo. Casos de homicídio que permanecem inconclusos por oito, dez anos após o crime abalam, estes sim e de modo duradouro, a imagem do Poder Judiciário.A pirotecnia e o massacre do direito de defesa que se verificam no caso Isabella não contribuem em nada para melhorar esse quadro.
Mudanças no processo penal
Editorial
O Estado de S. Paulo
09.05.2008
Com o objetivo de agilizar a tramitação das ações criminais, o Senado aprovou na semana passada cinco projetos que alteram vários dispositivos do velho Código de Processo Penal, editado em 1941, e que deverão ser submetidos à apreciação da Câmara dos Deputados. Dos cinco projetos, três vieram do Executivo e dois são de autoria de senadores. Eles foram apresentados após os ataques do PCC, em 2006 em São Paulo, e do assassinato do menino João Hélio Vieites, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2007.
Os dois acontecimentos chocaram a opinião pública e vários movimentos sociais, mobilizados pelas famílias das vítimas, passaram a reclamar medidas mais rigorosas em matéria de combate à violência. Para aplacar o clamor da opinião pública, deputados e senadores apresentaram dezenas de propostas para aumentar o rigor das punições previstas pelo Código Penal. Só no ano passado, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado votou 33 projetos com esse objetivo. Muitos foram redigidos às pressas, contendo falhas jurídicas. Além disso, preocupados em aparecer na mídia, parlamentares passaram a disputar acirradamente a paternidade dos projetos.
Para evitar o risco de aprovação de propostas com graves vícios legais e acabar com as disputas entre parlamentares pela autoria dos projetos, as lideranças partidárias, de acordo com as Mesas das duas Casas Legislativas, selecionaram os projetos mais importantes, que teriam tratamento prioritário no Senado e na Câmara. Com isso pretendeu-se evitar que a disputa pelos dividendos políticos da modernização da legislação penal desfigurasse os projetos.
Os cinco projetos aprovados pelo Senado fizeram parte desse acordo. Até julho do ano passado, coube ao senador Antonio Carlos Magalhães (DEM-BA), então presidente da CCJ, coordenar a tramitação dessas propostas. Com sua morte, a função foi assumida pela senadora Ideli Salvatti (PT-SC). Entre as medidas aprovadas, uma das mais oportunas suspende o prazo de prescrição nas ações dos tribunais superiores contra réus com direito a foro privilegiado. De autoria do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), ela tem por objetivo evitar os recursos protelatórios que permitem a extinção dos processos sem julgamento de mérito. Também foram aprovados projetos que agilizam o processo penal, como o que substitui procedimentos escritos por procedimentos orais e o que permite tramitação especial nos casos de absolvição sumária, evitando longa demanda processual quando não há provas materiais contra o acusado.
O projeto mais importante é o que revoga o direito dos réus condenados por homicídio de exigir a realização de um novo júri, quando a pena aplicada for superior a 20 anos. Justificado pelos criminalistas em nome do "garantismo processual", esse recurso permite que criminosos violentos aguardem em liberdade novo julgamento e propicia situações que desmoralizam a Justiça, como acaba de ocorrer no Pará, com a absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos Moura. Acusado de mandar matar a missionária Doroty Stang, em 2005, ele foi condenado a 30 anos de prisão pelo primeiro júri a que se submeteu, em maio de 2007. Graças ao direito automático a um novo julgamento, ele foi surpreendentemente absolvido pelo segundo júri, nesta semana. Para evitar que isso aconteça, os juízes criminais há muito tempo vêm aplicando penas inferiores a 20 anos a homicidas que deveriam receber punições muito mais rigorosas.
Mas entre as medidas aprovadas também há algumas de escassa viabilidade. Uma concentra a tomada de depoimentos de testemunhas de acusação e defesa em uma única audiência. A medida esbarra na freqüente impossibilidade de se reunir várias testemunhas, às vezes procedentes de diversos locais, num só dia. Outra, é a que dá preferência de tramitação e julgamento às ações penais contra servidores públicos. Proposta pela senadora Ideli Salvatti, a medida tem viés corporativo e fere o princípio da isonomia.
As maiores críticas aos projetos vieram de advogados, que receiam perder trabalho com a modernização do processo penal. Alegam que a agilização das ações penais compromete a defesa ampla e o contraditório. Mas essas garantias continuam em vigor.
A cada dia, entram 200 detentos a mais do que saem nas prisões do País
Vannildo Mendes
O Estado de S. Paulo
12.05.2008
População penitenciária cresceu 13,4% em um ano; diretor do Depen diz que só fazer cadeias é ‘enxugar gelo’
O Brasil tem quase 423 mil detentos em presídios, 50 mil (13,4%) a mais do que os 373 mil de janeiro de 2007, segundo dados do Ministério da Justiça. O número de encarcerados quase dobrou em relação aos 217 mil verificados no início da década. A cada dia entram cerca de 200 presos a mais do que os que saem das 1.150 prisões espalhadas pelo País.
Apesar dos elevados investimentos na construção de novos presídios, o déficit não pára de crescer. Faltam 143 mil vagas na contagem oficial, mas se for levado em conta o sub-registro, o déficit estimado é de 185 mil vagas. Outros 422,5 mil brasileiros cumprem penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade. Um deles é o ex-secretário-geral do PT, Silvio Pereira, o primeiro réu punido por envolvimento no escândalo do mensalão.
Esse quadro decorre, segundo especialistas ouvidos pelo Estado, da combinação de três fatores: o brasileiro está delinqüindo mais, a ação repressiva da polícia está mais eficiente e a Justiça, apesar de ainda lenta, condena cada vez mais pessoas ao cárcere, muitas vezes sem necessidade, por crimes de baixo teor ofensivo. “Estamos enxugando gelo”, diz o diretor Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Maurício Kuehne, que defende uma mudança radical no modelo de segurança pública para evitar o colapso do sistema. “Não adianta só reprimir e fazer mais cadeias, não há dinheiro que chegue.”
Há, em todo o País, drásticas carências nos juizados de execução penal, um dos principais fatores do abarrotamento do sistema. A taxa de encarceramento é de 225 presos para cada grupo de 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos, o índice é de mais de mil presos para 100 mil habitantes.
Mas a situação brasileira está em parte mascarada pela elevada quantidade de mandados de prisão não cumpridos pela polícia. Em janeiro, conforme o Ministério da Justiça, existiam mais de 550 mil ordens de prisão em aberto, algumas delas há anos. Caso essas prisões fossem efetuadas, a taxa brasileira mais do que duplicaria.
Mesmo sem elas, a situação carcerária do Brasil é ainda mais grave do que os números oficiais apontam, por causa dos sub-registros. É o caso do Paraná, que escondeu mais de 4 mil presos no formulário estatístico do último censo penitenciário. “Há vários Estados nessa situação e estou cobrando explicações aos governos”, diz Kuehne. Conforme estima o diretor, 40% do total de presos (cerca de 170 mil) são provisórios e pelo menos 30% desses (50 mil) deverão ser soltos - por falta de provas - ou condenados a penas alternativas, por causa do baixo teor ofensivo de seus delitos.
MAIS VAGAS
A boa notícia do setor é que pela primeira vez nas últimas três décadas, em 2007 houve uma oferta de vagas 7,4% maior do que o número de presos que entraram no sistema. O número de detentos envolvidos em rebelião também caiu de 26 mil em 2006 para 6 mil no ano passado.
No mais, as notícias não foram boas. Em 2008, o Depen planeja investir mais de R$ 550 milhões para construir quase 11.750 novas vagas prisionais e torce para que a escalada de criminalidade retroceda no País. No ano passado, o investimento foi de R$ 134 milhões e criou só 5.349 novas vagas.
Outro dado preocupante para as autoridades é a elevada taxa de reincidência dos detentos brasileiros, uma das mais altas do mundo. Pelo último censo do Depen, de cada 10 que são soltos, pelo menos 7 voltam para a prisão. Mais de 250 mil presidiários tem menos de 30 anos.
Há um mês, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, definiu a situação da população carcerária como um “quadro de vergonha nacional”. “Nosso sistema vive uma situação inaceitável do ponto de vista humano, jurídico e do estado democrático de direito”, admite o ministro da Justiça, Tarso Genro. Além do incentivo às penas alternativas, o governo espera contar com mais três medidas para amenizar a superlotação dos presídios. São elas: o monitoramento eletrônico dos presos, a videoconferência para interrogatórios e audiências e a remissão de pena pelo estudo. Hoje, a remissão só se dá pelo trabalho, na base de um dia comutado para cada três trabalhados. As propostas aguardam votação no Congresso.
NO MUNDO
Mas o Brasil não é exceção. No mundo todo, incluindo os países desenvolvidos, a criminalidade dá sinais de recrudescimento, segundo estudo do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud). Entre 2002 e 2005, o número de presos cresceu 52% na Espanha, 66% na Irlanda e 102% na Holanda.
“O problema é mundial”, afirma o diretor do Depen. “O delito é um fenômeno social e é preciso preveni-lo, não basta aumentar o número de vagas na cadeia”, completa o presidente do Ilanud, Elias Carranza.
Editorial
O Estado de S. Paulo
09.05.2008
Com o objetivo de agilizar a tramitação das ações criminais, o Senado aprovou na semana passada cinco projetos que alteram vários dispositivos do velho Código de Processo Penal, editado em 1941, e que deverão ser submetidos à apreciação da Câmara dos Deputados. Dos cinco projetos, três vieram do Executivo e dois são de autoria de senadores. Eles foram apresentados após os ataques do PCC, em 2006 em São Paulo, e do assassinato do menino João Hélio Vieites, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2007.
Os dois acontecimentos chocaram a opinião pública e vários movimentos sociais, mobilizados pelas famílias das vítimas, passaram a reclamar medidas mais rigorosas em matéria de combate à violência. Para aplacar o clamor da opinião pública, deputados e senadores apresentaram dezenas de propostas para aumentar o rigor das punições previstas pelo Código Penal. Só no ano passado, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado votou 33 projetos com esse objetivo. Muitos foram redigidos às pressas, contendo falhas jurídicas. Além disso, preocupados em aparecer na mídia, parlamentares passaram a disputar acirradamente a paternidade dos projetos.
Para evitar o risco de aprovação de propostas com graves vícios legais e acabar com as disputas entre parlamentares pela autoria dos projetos, as lideranças partidárias, de acordo com as Mesas das duas Casas Legislativas, selecionaram os projetos mais importantes, que teriam tratamento prioritário no Senado e na Câmara. Com isso pretendeu-se evitar que a disputa pelos dividendos políticos da modernização da legislação penal desfigurasse os projetos.
Os cinco projetos aprovados pelo Senado fizeram parte desse acordo. Até julho do ano passado, coube ao senador Antonio Carlos Magalhães (DEM-BA), então presidente da CCJ, coordenar a tramitação dessas propostas. Com sua morte, a função foi assumida pela senadora Ideli Salvatti (PT-SC). Entre as medidas aprovadas, uma das mais oportunas suspende o prazo de prescrição nas ações dos tribunais superiores contra réus com direito a foro privilegiado. De autoria do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), ela tem por objetivo evitar os recursos protelatórios que permitem a extinção dos processos sem julgamento de mérito. Também foram aprovados projetos que agilizam o processo penal, como o que substitui procedimentos escritos por procedimentos orais e o que permite tramitação especial nos casos de absolvição sumária, evitando longa demanda processual quando não há provas materiais contra o acusado.
O projeto mais importante é o que revoga o direito dos réus condenados por homicídio de exigir a realização de um novo júri, quando a pena aplicada for superior a 20 anos. Justificado pelos criminalistas em nome do "garantismo processual", esse recurso permite que criminosos violentos aguardem em liberdade novo julgamento e propicia situações que desmoralizam a Justiça, como acaba de ocorrer no Pará, com a absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos Moura. Acusado de mandar matar a missionária Doroty Stang, em 2005, ele foi condenado a 30 anos de prisão pelo primeiro júri a que se submeteu, em maio de 2007. Graças ao direito automático a um novo julgamento, ele foi surpreendentemente absolvido pelo segundo júri, nesta semana. Para evitar que isso aconteça, os juízes criminais há muito tempo vêm aplicando penas inferiores a 20 anos a homicidas que deveriam receber punições muito mais rigorosas.
Mas entre as medidas aprovadas também há algumas de escassa viabilidade. Uma concentra a tomada de depoimentos de testemunhas de acusação e defesa em uma única audiência. A medida esbarra na freqüente impossibilidade de se reunir várias testemunhas, às vezes procedentes de diversos locais, num só dia. Outra, é a que dá preferência de tramitação e julgamento às ações penais contra servidores públicos. Proposta pela senadora Ideli Salvatti, a medida tem viés corporativo e fere o princípio da isonomia.
As maiores críticas aos projetos vieram de advogados, que receiam perder trabalho com a modernização do processo penal. Alegam que a agilização das ações penais compromete a defesa ampla e o contraditório. Mas essas garantias continuam em vigor.
A cada dia, entram 200 detentos a mais do que saem nas prisões do País
Vannildo Mendes
O Estado de S. Paulo
12.05.2008
População penitenciária cresceu 13,4% em um ano; diretor do Depen diz que só fazer cadeias é ‘enxugar gelo’
O Brasil tem quase 423 mil detentos em presídios, 50 mil (13,4%) a mais do que os 373 mil de janeiro de 2007, segundo dados do Ministério da Justiça. O número de encarcerados quase dobrou em relação aos 217 mil verificados no início da década. A cada dia entram cerca de 200 presos a mais do que os que saem das 1.150 prisões espalhadas pelo País.
Apesar dos elevados investimentos na construção de novos presídios, o déficit não pára de crescer. Faltam 143 mil vagas na contagem oficial, mas se for levado em conta o sub-registro, o déficit estimado é de 185 mil vagas. Outros 422,5 mil brasileiros cumprem penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade. Um deles é o ex-secretário-geral do PT, Silvio Pereira, o primeiro réu punido por envolvimento no escândalo do mensalão.
Esse quadro decorre, segundo especialistas ouvidos pelo Estado, da combinação de três fatores: o brasileiro está delinqüindo mais, a ação repressiva da polícia está mais eficiente e a Justiça, apesar de ainda lenta, condena cada vez mais pessoas ao cárcere, muitas vezes sem necessidade, por crimes de baixo teor ofensivo. “Estamos enxugando gelo”, diz o diretor Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Maurício Kuehne, que defende uma mudança radical no modelo de segurança pública para evitar o colapso do sistema. “Não adianta só reprimir e fazer mais cadeias, não há dinheiro que chegue.”
Há, em todo o País, drásticas carências nos juizados de execução penal, um dos principais fatores do abarrotamento do sistema. A taxa de encarceramento é de 225 presos para cada grupo de 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos, o índice é de mais de mil presos para 100 mil habitantes.
Mas a situação brasileira está em parte mascarada pela elevada quantidade de mandados de prisão não cumpridos pela polícia. Em janeiro, conforme o Ministério da Justiça, existiam mais de 550 mil ordens de prisão em aberto, algumas delas há anos. Caso essas prisões fossem efetuadas, a taxa brasileira mais do que duplicaria.
Mesmo sem elas, a situação carcerária do Brasil é ainda mais grave do que os números oficiais apontam, por causa dos sub-registros. É o caso do Paraná, que escondeu mais de 4 mil presos no formulário estatístico do último censo penitenciário. “Há vários Estados nessa situação e estou cobrando explicações aos governos”, diz Kuehne. Conforme estima o diretor, 40% do total de presos (cerca de 170 mil) são provisórios e pelo menos 30% desses (50 mil) deverão ser soltos - por falta de provas - ou condenados a penas alternativas, por causa do baixo teor ofensivo de seus delitos.
MAIS VAGAS
A boa notícia do setor é que pela primeira vez nas últimas três décadas, em 2007 houve uma oferta de vagas 7,4% maior do que o número de presos que entraram no sistema. O número de detentos envolvidos em rebelião também caiu de 26 mil em 2006 para 6 mil no ano passado.
No mais, as notícias não foram boas. Em 2008, o Depen planeja investir mais de R$ 550 milhões para construir quase 11.750 novas vagas prisionais e torce para que a escalada de criminalidade retroceda no País. No ano passado, o investimento foi de R$ 134 milhões e criou só 5.349 novas vagas.
Outro dado preocupante para as autoridades é a elevada taxa de reincidência dos detentos brasileiros, uma das mais altas do mundo. Pelo último censo do Depen, de cada 10 que são soltos, pelo menos 7 voltam para a prisão. Mais de 250 mil presidiários tem menos de 30 anos.
Há um mês, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, definiu a situação da população carcerária como um “quadro de vergonha nacional”. “Nosso sistema vive uma situação inaceitável do ponto de vista humano, jurídico e do estado democrático de direito”, admite o ministro da Justiça, Tarso Genro. Além do incentivo às penas alternativas, o governo espera contar com mais três medidas para amenizar a superlotação dos presídios. São elas: o monitoramento eletrônico dos presos, a videoconferência para interrogatórios e audiências e a remissão de pena pelo estudo. Hoje, a remissão só se dá pelo trabalho, na base de um dia comutado para cada três trabalhados. As propostas aguardam votação no Congresso.
NO MUNDO
Mas o Brasil não é exceção. No mundo todo, incluindo os países desenvolvidos, a criminalidade dá sinais de recrudescimento, segundo estudo do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud). Entre 2002 e 2005, o número de presos cresceu 52% na Espanha, 66% na Irlanda e 102% na Holanda.
“O problema é mundial”, afirma o diretor do Depen. “O delito é um fenômeno social e é preciso preveni-lo, não basta aumentar o número de vagas na cadeia”, completa o presidente do Ilanud, Elias Carranza.