30.1.08

GODOFREDO GUEDES - ANO DO CENTENÁRIO

Godofredo Guedes, o mestre da clarineta
AUTOBIOGRAFIA
Publicada em O NORTE, 11.03.2008

Nasci no dia 15 de agosto de 1908 na cidade baiana denominada Riacho de Santana, na fazenda do meu avô a duas léguas daquela cidade.
O meu pai se chamava José de Souza Guedes e minha mãe Durvalina Fernandes Guedes.
Como todo menino do interior, tive uma infância feliz e cheia de peraltices: tomando banho de poço, caçando passarinho e matando aula pra vadiar. Mas, cedo ainda, percebi que já tinha as minhas tendências artísticas, tanto é que, aos dez anos de idade, recebi como presente de meu pai uma caixa de lápis de cor e comecei a desenhar paisagens. Aos doze anos eu já tocava cavaquinho e nesta época fiz um violão. Sempre aprendi tudo sozinho, talvez porque eu seja curioso e criativo. A única coisa que não aprendi sozinho foi o conhecimento de farmácia.
Aos quatorze anos comecei a trabalhar numa farmácia. Antigamente os medicamentos eram preparados pelos próprios farmacêuticos e toda informação vinha em francês. Devido às circunstâncias e necessidades tive que aprender a ler e traduzir tudo. Estive nessa função durante onze anos.
Tudo que eu faço é por prazer, não faço nada que não me satisfaça.
O trabalho de pintura e de música me foi paralelo sempre. Comecei a dominar os pincéis já antes dos quinze anos, lá em Santana, em 1923. O meu primeiro trabalho foi o “Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa”, trabalho feito a óleo que se encontra na cidade do mesmo nome, no estado da Bahia.
Em Santana formei um conjunto de jazz com o nome de G. Guedes e seu conjunto, fizemos muito sucesso e tocávamos sempre de graça. O interessante é que todo o instrumental de percussão e alguns outros, como o violão, foram criados por mim. Os componentes do conjunto eram: Flávio Aguiar, Julião Júnior, Francisco Guedes, Olímpio Guedes e eu, naturalmente. Esses dois últimos meus irmãos.
Mudei para Montes Claros em 1935. Para ganhar o pão eu pintava tudo: placas, letreiros, fachadas e quadros. No setor musical comandava um conjunto que enchia as noites boêmias dos cabarés grãfinos da época aqui em Montes Claros.
Entre 1935 e 36 fui morar em Monte Azul para colocar ali uma farmácia, gostei da cidade, mas os negócios não foram bem. A maioria das minhas músicas foi feita lá e, talvez devido ao meu insucesso, por estar longe da terra natal, a sensibilidade aguçada me conduziu para a real aptidão minha. Foi então que voltei para Montes Claros.
Morei também em Belo Horizonte, onde, juntamente com outros artistas, iniciamos a feira de artes na Praça da Liberdade. Foi então que um amigo me fez voltar para Montes Claros. Eu tinha poucos amigos em Belo Horizonte e grandes amigos em Montes Claros, como Constantino, e foi ele que me disse: “Homem, se você morrer em Belo Horizonte, ninguém vai ao seu enterro, mas aqui em Montes Claros é capaz de parar a cidade”.
O meu instrumento preferido é a clarineta, gosto de qualquer gênero de música popular brasileira, principalmente o chorinho. A minha melhor música e que fez mais sucesso foi
Cantar.
Gosto de preparar eu mesmo as minhas tintas, mais por motivo econômico. O melhor quadro que pintei foi o retrato do pai de Constantino e o de João Maurício.
Considero-me realizado, tanto na pintura, quanto na música. Já nem sei quantos quadros pintei, talvez mais de 3.000 e umas 60 músicas.
A minha maior glória é ter quadros em quase todos os lares montesclarenses, e a minha maior emoção, além daquela do casamento, foi no dia que recebi o titulo de cidadão honorário de Montes Claros, em 1947.
Comecei a compor em 1931, no mesmo ano em que me casei com Júlia. Ela é e sempre foi a minha companheira das horas felizes e tristes. Temos oito filhos: Terezinha, Dolores, José, Neuza, Maristela, Lúcia, Hélio e Beto. Sou, hoje, o homem mais feliz do mundo!
G.Guedes
Na sua modéstia, GG deixou de citar a feitura de dois pianos e uma marimba mexicana. Sobre os pianos, leia abaixo, nesta postagem, após o texto de Simeão Ribeiro. Ainda no que se refere a feitos musicais, a sua viagem ao Rio, levando as partituras de suas músicas debaixo do braço (ele as escrevia, sim, ele aprendera - sozinho - a escrever música, e através de cartilhas, veja só!), em busca do merecido reconhecimento pela então Rádio Nacional. Conseguiu apresentar-se no auditório daquela emissora e foi aquele sucesso. Mas, quando manifestou a vontade de gravar o seu trabalho, foi "barrado" (a expressão é dele) pelo diretor musical da rádio à época - Ari Barroso -, que simplesmente quis apoderar-se das canções, gravando-as ele próprio. Godofredo retornou amargurado dessa aventura.
No que toca à sua pintura, deixou de assinalar o belo trabalho de restauração da abóbada da secretaria de Saúde do estado, em Belo Horizonte, trabalho que lhe consumiu alguns meses. Auxilou-o seu filho Hélio (Patão), encarregado de lixar as áreas previamente demarcadas, dar-lhes massa e aplicar-lhes a base. Depois, Godofredo vinha com os carvões, esboçava as imagens tendo como modelos as ainda preservadas do afresco e seguia em frente até o arremate final. Quase todos os dias eu passava por lá, ali, na praça da Liberdade, para acompanhar o trabalho da dupla. A figura de Godofredo, metido naqueles aventais brancos, nas alturas daqueles andaimes, me lembrava Miguel Ângelo na capela Sistina... Pouco a pouco os leões dourados e outras figuras ganhavam vida, ressurgiam daquela parede pálida. Um verdadeiro trabalho de heráldica. Está lá, para quem quiser apreciar. Ah, GG e Pato faturaram uma bela soma com a obra.
A sua ida e vinda a Monte Azul também merece reparo. Como aprendera o francês necessário à manipulação de medicamentos (a farmacopéia era quase toda nessa língua à época), ele os preparava com rara destreza. Porém, era dado a socorrer os mais necessitados sem nada lhes cobrar... Talvez tenha omitido esse fato na autobiografia acima porque, bom cristão que era, sabia que caridade não se alardeia... Então, realmente, a pharmácia não podia dar lucro... Acrescente-se a isso o fato de o prefeito local ser proprietário da outra pharmácia existente no município e lhe haver enviado um "recado", por um capanga, no qual afirmava não tolerar concorrência... Bendito prefeito! Só assim Godofredo voltou a viver entre nós...


Revista MONTES CLAROS, 1941
REGINAURO SILVA, JORNAL DO POVO, 1984


Godofredo Guedes, além de artista, vem se constituindo num mágico da vida que aportou em Montes Claros há tanto tempo, trazendo a boa mensagem da gente baiana, deixando marcado na nossa história a sua passagem, não só através dele e de dona Júlia, como de Patão, Beto, Zeca e tantas outras pessoas que, trazendo na alma, no sangue, o dom da arte, vêm contribuindo para a formação dessa gente montes-clarense, dessa gente sertaneja.
Eu não ressaltaria apenas a retrospectiva de Godofredo Guedes como uma homenagem de Montes Claros a ele, ressaltaria principalmente o que deixaram de fazer por ele.
Godô na realidade parece que nunca foi levado muito a sério pela gente de Montes Claros, apesar de toda sua vibração como compositor, como artista da viola, apesar de suas qualidades como pintor, ele nunca foi considerado como um grande artista em Montes Claros, pelos montes-clarenses, ao contrário do que acontece fora daqui.
Então, eu acho que agora chegou a vez de Montes Claros pedir desculpas, de dar a mão à palmatória e prestar esse pleito de gratidão a um dos seus mais significativos moradores, um dos seus mais competentes habitantes, que é Godofredo Guedes, e assim homenagear também toda sua família, família de artistas.
Uma das coisas, por exemplo, que pouca gente sabe é que Godofredo Guedes é um dos maiores fabricantes de tintas do país. Usando gemas, claras de ovo, terra e tantas coisas que busca longe daqui, na Bahia, ele fabrica muitas tintas de ótima qualidade, superiores inclusive às que o Brasil importa hoje, e assim ele vai fazendo seus quadrinhos, fazendo sua arte, retratando, como diz o Konstantin, vai transmitindo a alma da Bahia, a alma de Montes Claros, enfim, a alma do sertão para uma platéia sempre ávida de coisas simples, coisas modestas, coisas que talvez por serem tão modestas fizeram com que Godô não fosse levado muito a sério até hoje.
Sua obra e seu trabalho, apesar de tudo, estão indelevelmente marcados na história de Montes Claros.


RETRATO FALADO DE GODOFREDO GUEDES

Simeão Ribeiro Pires


Ele é um "cabra da peste"... claro que no melhor dos sentidos...

Ele é genial e polivalente.

Compositor, músico, pintor e de espírito inventivo. Fabricou um "compressor" para as suas pinturas e cartazes... e um piano que deveria ter sido recolhido para o futuro Museu de Montes Claros.

Embora não pareça, colhe-se de sua vida quadros de sofrimentos, de sofridas lutas, em uma conformação de pensamento de Vargas Vila de que "nada existe sem a dor."

Do balanço que observo de suas lutas e vitórias, durante muitos anos, ele nada seria se não fizesse "das pedras do seu caminho"... incentivos para vencer.

É um patrimônio vivo de toda a nossa Montes Claros.

Tal é o seu retrato... de um "cabra da peste"...



Godofredo fabricou dois pianos, e não um, como diz em texto acima o nosso querido ex-prefeito Simeão Ribeiro (1958-1962). O primeiro instrumento, disse-me ele, GG, não ficara bom: o teclado saíra ondulado. Daí partiu para a confecção do segundo, perfeito. Tudo foi feito por ele, com exceção do "chassis" em ferro fundido. Para a feitura das cordas e bordões ele inventou uma maquininha com pedal de bicicleta que as enrolava uma sobre a outra. Depois, para atingir o timbre exigido, batia com uma varinha em cada uma delas, esticadas, até o seu privilegiado ouvido "absoluto" dar o ok final. Fica o registro.

E por qual razão resolvera Godô fazer um piano? Para presenteá-lo à sua filha Tereza, que, aficcionada ao instrumento e sem poder adquirí-lo, nem ele, o pai - à época um piano era caríssimo -, teve assim o sonho realizado. E que fim aguardava esse piano, que certamente iria algum dia para o Museu de Montes Claros até hoje inexistente? A chuva, o sol, o tempo... Com a mudança da família Guedes para Belo Horizonte em 1962, o precioso instrumento foi deixado praticamente ao relento.